por Conceição Rodrigues__
gatos rajados
são
trovões desfilando nos muros
-intocáveis-
a lava
engoliu a cidade e agora nos resta viver o inferno
as aves
sobrevoam os beijos que não foram dados
recebem
rajadas de ardor
uma
agonia asfixiada estrangula minhas veias como o pôr do sol
fumávamos
monóxido de carbono e nuvens coloridas
a lama
deglutiu mariana as fábricas o trem os trilhos
o tamanho
do seu pau não tem importância querido
o tamanho
de qualquer dor não tem importância querido
dor é
dor é dor é dor
a crosta
terrestre as camadas da terra o dilúvio o solstício
quando
mais fundo mais quente
mais
fundo- digo
mais
fundo- promete
eu
arrefeço mas a profundidade não é suficiente
a
catedral dos fantasmas badala toda meia-noite
e quanto
mais amante mais trabalho e preguiça
o senhor
dos espelhos não poupa ninguém
carimbados
em nossa testa código de barras validade vincos
implorei
ao senhor dos espelhos despir a túnica de são sebastião
o santo
tem ombros mansos de cordeiro
carne
macerada nas ervas sucosas
mais
gostoso que chouriço e molusco
é bonito
como a pedra que tranca o sepulcro de cristo
eu tenho
muitos lábios negros e língua solta
línguas
línguas línguas de secretos idiomas
tenho
muitos arcos bestas balestras e alvo
e flechas
e flechas e flechas que lambem da pele aos órgãos
o dia a
dia é purgatório- será exibido em tela
o mundo acaba e eles gritam gozo
santa
Brígida
-a
400 anos do fim do mundo
o
demônio será deixado solto
no
meio da nossa cidade:
santa
brígida recobre a bola de cristal
e
guarda as cartas de tarô
tudo
por conta da imodéstia e da falta de fé
por
isso o anjo derrocado reina
e
crucifica-se
como
quem faz miojo
um
santo a todo minuto
no
sudão em hiroshima no purgatório
na
favela
a
roda da tortura
gira-gira
gira-gira gira-gira
a
roda da tortura gira-gira
enquanto
gememos
o meu eu lírico é
um jeito cínico de falar sobre meus amantes nos livros
o que eu
queria era dizer o contrário e me resguardar de minhas próprias mentiras
tenho
algumas compulsões apesar da febre
é possível que albert camus trepe comigo esta noite sou capaz de beijar-lhe o plasma chupar
o tutano do cérebro dos ossos tanto faz
nasci uma
estrela decadente desde que fui feita de gases poeira cósmica e marie curie
é
reconhecido meu direito às vaias em cartório
o
manancial de lourdes os mistérios marianos
a primeira dor de maria foi lhe apresentarem as espadas da dor que lhe acompanharam a vida
toda
a derradeira foi o protestante que disse que só jesus tinha importância e que maria não tinha
falo e coisa e tal pensei sobre isso enquanto flutuavam os anéis de fumaça do meu cigarro
invisível
acredito nas adagas furiosas nos punhais cortantes bem areados como os fundos das panelas
que me ofereceram para esfregar
mas é claro que index é coisa ad infinitum por isso tatuei beije-me com os beijos
de
sua língua porque sua lambida é melhor
que vinho
toda
borda-abismo gozo de papoula africana
quero
dormir uma madrugada inteira nos campos de arroz cambojanos
a moça em
frente ao prédio se agarra ao pacote como uma recém-parida
se agarra
ao filho
é claro
que o domingo merece uma praia e um chope estúpido
os
resistentes ganharam bala de borracha e cegueira
os
estampidos da nigéria se ouviram por aqui no recife
e os venezuelanos estendem as mãos em nossos sinais- cheios de filhos- essas lebres de olhos
andinos orientais qualquer coisa- já não bastam nossos índios?
em que
trabalharão os policiais quando todos os pretos forem extintos?
um senhor
muito distinto os chamou de vagabundos
os
fardados oferecem cassetetes e sprays de pimenta
minha
centelha já nasceu apagada
virou
cinzas com a cinemateca a biblioteca a memória
o
angolano é quem faz certo: vende contrabando
indígenas
queimaram máquina caríssima dos pecuaristas
maria
vive os tormentos da paixão assistindo telenovelas
há gentes
nas filas esperando para roer os ossos
a síria
se divide entre barricadas e milícias
e meu eu
lírico da mais torpe pornografia se
esfrega
nas mãos
dos presidiários
palavra
de santa
she had the face of an angel, smiling with sin
ac/dc
dou
minha palavra
de
bêbado
que
as santas não usam
calcinha
por
debaixo dos mantos
e
vestidos
a
minha especialidade
é
sentir saudade
do
que está acontecendo
dou
minha palavra
de
puta
que
para ser perdoado
é
preciso primeiro
pecar
as
virgens desperdiçadas
fizeram
nascer
um
pé de mortos
no
meio da minha sala
agora
todos os dias
varro
ossos
conto
ruínas
sou
tão donzela quanto
uma
lápide
um
tijolo
sofro
de soco
no
estômago
e
frio na barriga
enquanto
repouso no líquido amniótico
gotíssima serena
estou com a gotíssima serena
amolando minhas unhas de tigre
passando meu batom de fogo
enquanto folheio jornal
do século passado
a peste bubônica não será páreo
para o regurgito das tripas
para a faca areando o bucho
dos meus desafetos
estou com a gotíssima serena
com meus olhos de espadas
sacando coriscos
com meu revólver de prata
atirando flecha no alvo
hoje a besta cigana sou eu
estou com a gotíssima serena
convidando os diabos
para dançar comigo
por cima das brasas eternas
com as saias de pomba gira
*poemas do livro "Os dedos das Santas costumam Faiscar", de Conceição Rodrigues (Editora Patuá, 2021)