Cinco poemas de Conceição Rodrigues

 por Conceição Rodrigues__




gatos rajados

 

são trovões desfilando nos muros

-intocáveis-

a lava engoliu a cidade e agora nos resta viver o inferno

as aves sobrevoam os beijos que não foram dados

recebem rajadas de ardor

uma agonia asfixiada estrangula minhas veias como o pôr do sol

fumávamos monóxido de carbono e nuvens coloridas

a lama deglutiu mariana as fábricas o trem os trilhos

o tamanho do seu pau não tem importância querido

o tamanho de qualquer dor não tem importância querido

dor é dor    é dor       é dor

a crosta terrestre as camadas da terra o dilúvio o solstício

quando mais fundo mais quente

mais fundo-  digo

mais fundo-  promete

eu arrefeço mas a profundidade não é suficiente

a catedral dos fantasmas badala toda meia-noite

e quanto mais amante mais trabalho e preguiça

o senhor dos espelhos não poupa ninguém

carimbados em nossa testa código de barras validade vincos

implorei ao senhor dos espelhos despir a túnica de são sebastião

o santo tem ombros mansos de cordeiro

carne macerada nas ervas sucosas

mais gostoso que chouriço e molusco

é bonito como a pedra que tranca o sepulcro de cristo

eu tenho muitos lábios negros e língua solta

línguas línguas línguas de secretos idiomas

tenho muitos arcos bestas balestras e alvo

e flechas e flechas e flechas que lambem da pele aos órgãos

o dia a dia é purgatório- será exibido em tela

o mundo acaba e eles gritam gozo



santa Brígida

 

-a 400 anos do fim do mundo

o demônio será deixado solto

no meio da nossa cidade:

santa brígida recobre a bola de cristal

e guarda as cartas de tarô

tudo por conta da imodéstia e da falta de fé

por isso o anjo derrocado reina

e crucifica-se

como quem faz miojo

um santo a todo minuto

no sudão em hiroshima no purgatório

na favela

 

a roda da tortura

gira-gira gira-gira gira-gira

a roda da tortura gira-gira

enquanto gememos



 

o meu eu lírico é um jeito cínico de falar sobre meus amantes nos livros

 

o que eu queria era dizer o contrário e me resguardar de minhas próprias mentiras

tenho algumas compulsões apesar da febre

é possível que albert camus trepe comigo esta noite sou capaz de beijar-lhe o plasma chupar 

o tutano do cérebro dos ossos tanto faz

nasci uma estrela decadente desde que fui feita de gases poeira cósmica e marie curie

é reconhecido meu direito às vaias em cartório

o manancial de lourdes os mistérios marianos

a primeira dor de maria foi lhe apresentarem as espadas da dor que lhe acompanharam a vida

toda  

a derradeira foi o protestante que disse que só jesus tinha importância e que maria não tinha

falo e coisa e tal pensei sobre isso enquanto flutuavam os anéis de fumaça do meu cigarro

invisível

acredito nas adagas furiosas nos punhais cortantes bem areados como os fundos das panelas

que me ofereceram para esfregar

mas é claro que index é coisa ad infinitum por isso tatuei beije-me com os beijos 

de sua língua porque sua lambida é melhor que vinho

toda borda-abismo gozo de papoula africana

quero dormir uma madrugada inteira nos campos de arroz cambojanos

a moça em frente ao prédio se agarra ao pacote como uma recém-parida

se agarra ao filho

é claro que o domingo merece uma praia e um chope estúpido

os resistentes ganharam bala de borracha e cegueira

os estampidos da nigéria se ouviram por aqui no recife

e os venezuelanos estendem as mãos em nossos sinais- cheios de filhos- essas lebres de olhos

andinos orientais qualquer coisa- já não bastam nossos índios?

 

em que trabalharão os policiais quando todos os pretos forem extintos?

um senhor muito distinto os chamou de vagabundos

os fardados oferecem cassetetes e sprays de pimenta

minha centelha já nasceu apagada

virou cinzas com a cinemateca a biblioteca a memória

 

o angolano é quem faz certo: vende contrabando

indígenas queimaram máquina caríssima dos pecuaristas

maria vive os tormentos da paixão assistindo telenovelas

há gentes nas filas esperando para roer os ossos

a síria se divide entre barricadas e milícias

e meu eu lírico da mais torpe pornografia se esfrega

nas mãos dos presidiários

 

 

palavra de santa

she had the face of an angel, smiling with sin

 ac/dc

 

dou minha palavra

de bêbado

que as santas não usam

calcinha

por debaixo dos mantos

e vestidos

 

a minha especialidade

é sentir saudade

do que está acontecendo

 

dou minha palavra

de puta

que para ser perdoado

é preciso primeiro

pecar

 

as virgens desperdiçadas

fizeram nascer

um pé de mortos

no meio da minha sala

 

agora todos os dias

varro ossos

conto ruínas

 

sou tão donzela quanto

uma lápide

um tijolo

sofro de soco

no estômago

e frio na barriga

 

enquanto repouso no líquido amniótico

 


gotíssima serena

 

estou com a gotíssima serena

amolando minhas unhas de tigre

passando meu batom de fogo

enquanto folheio jornal

do século passado

 

a peste bubônica não será páreo

para o regurgito das tripas

para a faca areando o bucho

dos meus desafetos

estou com a gotíssima serena

com meus olhos de espadas

sacando coriscos

com meu revólver de prata

atirando flecha no alvo

hoje a besta cigana sou eu

 

estou com a gotíssima serena

convidando os diabos

para dançar comigo

por cima das brasas eternas

com as saias de pomba gira




*poemas do livro "Os dedos das Santas costumam Faiscar", de Conceição Rodrigues (Editora Patuá, 2021)





Conceição Rodrigues - Nasceu em Arcoverde, portal do sertão pernambucano, mas viveu a maior parte do tempo em Recife, onde mora até hoje. É graduada em Letras e tem especialização em Literatura. Leciona na rede pública de ensino. Recebeu menção honrosa no III Prêmio Pernambuco de Literatura com o livro de contos “Corda para nós”, e no IV Prêmio Pernambuco de Literatura recebeu menção honrosa com o romance “323”. Trabalhou como assistente de Raimundo Carrero na Oficina de Criação Literária- UBE. Organiza e participa de antologias. Dá assessoria em produção textual em diversos gêneros e áreas. Publicou em 2020 “Molhada até os ossos”, livro de poemas, pela Editora Patuá. Publicou em 2021 “Os dedos das santas costumam faiscar”, livro de poemas, pela Editora Patuá.  E-mail: cecitha7777@gmail.com