Comentário genetiano ao poema Sessões de Rato, de Leo Barth

 por Wellington Amancio da Silva__


Foto:  Yuval Zukerman



 

 Comentário genetiano ao poema Sessões de Rato[1], de Leo Barth



É tautológica toda e qualquer especulação filosófica a partir do conceito de um filósofo. A especulação que não traz o novo, todavia completamente o já-dito é redundante, isto é, tautológica ao modo plunct, plact, zuuum. O sangue mestiço filosofante é já uma tautologia incidental no cerne de qualquer boa sentença que se pretenda mudar o mundo (para pior, do ponto de vista edênico-liliputiano). Deste ponto, Hegel defendia que as ideias mudariam o mundo e assim morreu de cólera ao beber a péssima água do Rio Spree. Diante dessa cururufobia do livre pensar, decidimos, num lance de bozós, que a Porta de acesso a qualquer-coisa que nos permita respirar nestes dias ruins consiste em escrever ficção e filosofá-la, só, lá no sofá, ou entre amigos, num boteco arejado. A seriedade cansa. Temos, após, a ficção como livre engajamento existencial, o ofício de falar do que não existe no mundo real por causa disso, é mais verídica do que o fenômeno de uma pedra husserliana. Redescobrir a não-tradição latina que Borges nunciou! Dito isso, num intervalo de puxar o fôlego para mergulhar, nos deparamos, para a nossa alegria, com o “Sessões do Rato”, poema inédito de Leo Barth.


De cara, noto que o poema é psicodélico, como se andasse escrevendo no chão em falso de Van Gogh, enquanto ouve Fran Zappa. Contra o dito do profeta Elias (de uma nuvem maneta[1] versus a imensa deusa aridez) o “Desanuviar dos céus” abre para mim os versos de um autêntico poema lisérgico, se não minto, este diz uma verdade límpida no fundo falso da realidade, uma verdade dita para os “Robôs com defeito de fabricação” de Tom Zé[2]. E sempre há um jeitinho de burlar os correios, que por tal dádiva percebo de cara que o poema não perde a identidade na viagem. É um lance do universo do autor os elementos do seu imaginário pessoal estão todos lá. Para quem o lê sente a familiaridade, no torvelinho do cão de Guima, vê sua pena de fogo e seu nanquim liquefeito na Montilla.


Disse-me que ouvia Big Legs[3] de Frank Zappa enquanto escrevia. Penso que o efeito sonoro em sua mente avant-garde pode fazer mimetizar o numinoso com trajes de mundanidade numa noite mojaveanas em Maceió. Um estado de espírito para este momento? Tomar uma água gelada que descole/Tripas de cigarros, o resto, lá fora, é realidade de plástico-garrafa-verde-PET. Se a Terra é plana para aqueles que têm convicção da própria mentira, contra estes o poeta desce do monte à frente de Sísifo, à frente da pedra, à frente de todos.


É como se o mano Barth arrancasse de dentro da música de Zappa certos elementos, e num processo alquímicos, transformasse o “Dynamic Range” do som em signos, em letras que remetem a um certo nível de subjetividade urbana, fumante, fuçante, delirante, queimando chama de vida a granel para manter o brilho do seu farol noturno. O lance do som transmutado em signo é uma coisa louca! Tornar o jogo das ondas sonoras, de guitarras, de baixo, de bateria e vocais, num tipo de pensamento por escrito é um ato de poeta que ouviu música a vida toda e por isso sabe trafegar espiritualmente por diversos reinos bióticos, desde o vegetal até o monera, e ainda firmando passos no reino da escala cromática, logo acima do reino semiótica.


Em seus versos, a capa do disco de Frank Zappa contém, aparentemente estático, aquele cuja função é ao um só tempo rodar como louco e filosofar para ninguém A piscina rosa e a perna de um palhaço/Com rastreador digital. Tal imagem me faz imaginar uma versão nanica de Daniel Silveira e eu me arrebento de rir. A imagem sugestiva de Minha vizinha e dois livros antigos/À queima-roupa não tem conotação sexual, pois tal verso pode remeter a uma “visagem”, a aparição de uma Audrey Hepburn de pele marrom. Há um globalismo em que o Diálogo seria realmente possível, no cerne de genuína comunhão, entre Ladrões da Chechênia e caranguejos búlgaros, que conversam fluentes o leobarthês. A música de Zappa, a cereja do bolo da música de Zappa, o disco que se fura de tão escutado, e o que se descobre após, como revelação a nota que se quer transcrever está na “fenda” de todo álbum bem gravado, o buraco do meio, o osso oco do vinil, a agulha de diamante artificial, cardume, o oráculo do pedal fuzz, a força que faz quebrar as baquetas e calar o vinil de Roberto Ossobuco (em que dançam ladrões e caranguejos), a revolução interna, fisiológica, Uma janela para o disco quebrado. Toca-se mais uma na radiola no boteco do avivamento non-pentecostal! O rock é a porta, a poesia é a mão-da-chave. O céu seria o amalgama entre escala cromática e palavra.


Contra o pequeno gesto do resto, contra o esgotamento das mãos que pendem sustentando o globo terrestre, eis o poeta & professor batendo o recorde de tantas horas semanais de ofício ignorante. Os velhos filósofos especulavam debaixo da sombra calma do castelo obtido a preço de diamantes africanos e sangue; já o poeta subsiste debaixo da sombra rica de uma arborosa, numa simbiose estranha com a poesia. E sobrevive como professor, às vezes adestrando retardados e mini-traficantes. O autor de “Sessões do Rato”, um orixá de barba, etílico & furibundo, prometeu-caeté indomesticável, um antropos numa geografia de sal-gema, entre Diógenes de Sinope e Londe de Canapi, todavia maior que os dois juntos.


O cosmos é branco-osso. Não se obriga ninguém aqui a um entendimento ordenado da realidade. A alegoria mundana, a ironia escondida são nosso pão crioulo. Nada melhor que um Jazz Fusion para /Comemorar o fim do mundo/E a morte dos líderes messiânicos, dos teotranqueiras, e o anão de Viena enfim tomou posse do Púlpito. minha vizinha, ou quem sabe a musa do pão... usa um xadrez de Seattle e bebe vinho.

 

 

Sessões do Rato

 

Desanuviar dos céus

Fumar um cigarro

Tomar uma água gelada que descole

Tripas de cigarros

A piscina rosa e a perna de um palhaço

Com rastreador digital

Ontem matei os meus gatos

Minha vizinha e dois livros antigos

À queima-roupa

Ladrões da Chechênia e caranguejos búlgaros

Uma janela para o disco quebrado

Que desemboca aos miolos de Chambaril croata e caldo baiano

Batendo o recorde de tantas horas semanais de ofício ignorante

Adestrando retardados e mini-traficantes

Que explodirão os três mundos avessos

D'uma goiaba

Nada melhor que um Jazz Fusion para

Comemorar o fim do mundo

E a morte dos líderes messiânicos

 

E, meu caro amigo, teu disco soa estranho mesmo…

 

 

Post scriptum de 09 de abril, por Leo Barth


 

Na verdade, fiz a parada após ler seu texto publicado. As demarcações e determinações geográficas musicais e a quebra disso tudo pela curiosidade e sensibilidade do amigo à empreita do disco novo fizeram-me lembrar como fora esquisito primeiras audições aleatórias do Zappa no YouTube. (Algumas ainda o são, meu ouvido é de leigo teimoso que quer aprender). Aí fiquei viajando, pensando pesado. E o esforço é grande quando se está nos portais do mundo dos acordados e sonâmbulos...pus o único disco que conheço do Zappa e meti a bronca observando a capa rosa e lembrando do tenebroso ofício que carrego. Apenas uma interação após a leitura do seu texto da Mirada.

 


[1] Poema inédito inspirado no conto a “A maleta quadrada em Atatürk” de Wellington Amancio da Silva. Revista Mirada, 2022.


[1] 1 Reis 18:44, amém.

[2]A gente já mente no gene, a mente do gene da gente. Faça suas orações uma vez por dia, depois mais sua consciência junto com os lençóis para a lavanderia”. Tom Zé.

[3] Versão Unedited Master Take.


 


Leo Barth, nasceu em 1984. Delmirense dividido entre sertões e capital do caos. Começou a escrever por causa da Teologia. “Homem que nasceu morto, e que se acha em cada esquina, poeta de bêbados e esquizofrênicos, delimitado pelo caos particular, e autor de nada”. É notável entre os novos poetas trágicos-febris, um dos nossos maiores poeta do underground alagoano. Tem uma filosofia existencial-literária parecida com o grande Macedônio Fernandez, que escrevia compulsivamente sem muito importar-se com publicações. Boêmio, Machadiano e acadêmico, o autor possui centenas de poemas inéditos, produzindo-os desde 2001. É cofundador do grupo “Arborosa”, de poesia, arte visual e fotografia, e editor do staff da Edições Parresia. Publicou na Utsanga (Itália) revista de poesia experimental, e em revistas brasileiras.

 

 


Wellington Amâncio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. É músico multi-instrumentista e produtor musical. Publicou-se: Ontologia e Linguagem (2015), Pensar a Indigência com Michel Foucault (2018), Gumbrecht leitor de Heidegger (2019) e Conceito de modo de convivência (2018), além de dezenas de artigos científicos. Em literatura publicou-se: Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) e Elegia da Imperfeição (2001). Editor das Edições Parresia. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca.