por Taciana Oliveira__
PRINCIPADO EXTINTO
Isto é um poema
fala de amor
ou do medo do amor
Fala da morte
ou do fim da amálgama
rosto voz alma e cheiro
que é a morte
Isto é um poema
tenha medo
Fala dos peregrinos
que atravessam avenidas
de sobretudo e óculos
carregando flores invisíveis
e chorando mudos
Isto aqui é um poema
fala da permanência inútil
de um coração devastado
de uma floresta devastada
de uma corrida devastada
logo depois do disparo
da arma de 40 peças
que soltou a bandeirinha
e assim mesmo se desfez
Isto é um poema
fala da aparição do inverno
fala da fuga dos albatrozes
fala do punhal sobre a mesa
e do absurdo do punhal
feito de madeira e pedra
sobre a mesa do jantar
Fala do poder da erosão
que afinal incide sobre
pele e nervo e osso e olho
Fala do desaparecimento
Fala do desaparecimento
Claro que é um poema
fala do toque de saída
no colégio de Île de France
e das 39 saias das meninas
esvoaçando sem vontade
na direção do cais de ferro
Fala do pânico do corpo
que esbarra em si mesmo
no espelho pela manhã
e do urro silencioso
que nenhum vizinho
escuta mas que ainda
assim reverbera sem dó
até a hora final
fala do vômito que advém
dos gestos repetidos
prolongados assim ad astra
até que o sono apague tudo
Fala da palavra saudade
ou da palavra terremoto
fala do olho que tudo via
deixando lentamente de ver
até mesmo a cara de Jack Steam
o porteiro da loja de discos
onde toca a canção de Chavela
Nada mais no mundo importa
Isto é que é poema
Fala do cheiro das flores
e da injustiça da existência
das flores na cidade
Fala da dor excruciante
meu bem excruciante
que faz até desejar
o fim do poema
o fim da palavra amor
que após o disparo
se espelha apenas
na palavra loucura.
ATÉ AS RUÍNAS PODEMOS AMAR
NESTE LUGAR
Lembro-me muito bem do tal
cantor basco
que costumava celebrar a chuva
no verão
Não ligava quase nada para as
conspirações
que recorrentemente se faziam
ouvir
debaixo das arcadas noturnas da
cidade
naquela época do intermezzo
lunar
Foi já depois do fascismo, um
pouco antes
da democracia enfaixada em
magnólias
O cantor, as arcadas, o perfume
e os disparos
me ensinaram que se deve
aproveitar a época
de transição para destrinçar o
brilho
As revoluções sempre foram o
lugar certo
para a descoberta do sossego:
talvez porque nenhuma casa é
segura
talvez porque nenhum corpo é
seguro
ou talvez porque depois de
encarar uma arma
finalmente seja possível
entender
as múltiplas possibilidades de
uma arma.
Matilde Campilho
*poemas do livro Jóquei (Editora 34, 2014)
Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga. Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…