Na cama com Goethe e Rubem Braga | Yvonne Miller

 por Yvonne Miller__



Para Fabrício Corsaletti

e Rubem Braga.

 

Fortaleza, 2019: Rubem Braga está morto há quase três décadas. O professor discursa com admiração sobre o maior cronista do Brasil, autor de quinze mil crônicas ao longo da sua quase esquecida carreira. E eis a preocupação:


— Daqui a trinta anos ninguém vai mais lembrar dele. Se estivéssemos na França ou nos Estados Unidos, teríamos uma Coleção de Ouro, existiria uma Obra Completa de Rubem Braga, com vinte volumes, capa dura, ornamentos dourados. Nós não valorizamos nossos cronistas!


Depois da aula, ainda revoltada pelo descaso literário que o pobre e genial escritor está sofrendo, corro para a próxima livraria.


— O escritor português? — pergunta a moça enquanto o procura no sistema.


— Brasileiro — corrijo, e as palavras do professor voltam a ecoar na minha cabeça: “Daqui a trinta anos ninguém vai mais lembrar dele.” Alguma coisa precisa ser feita, e urgentemente. Neste momento decido que serei eu mesma quem vai manter o nome de Rubem Braga vivo. Só não sei como. Ainda. Mas comprar um livro dele parece ser um bom primeiro passo.


— Achei!


Acompanho a moça aos fundos da loja. Da segunda fileira da última estante tira um livro grosso, sopra a poeira e o entrega nas minhas mãos.


— É o único.


Um calafrio me percorre por dentro enquanto acaricio com dedos trêmulos o título escrito na capa: 200 crônicas escolhidas. Duzentas não são quinze mil, mas já é alguma coisa...

 

Foi assim que, na mesma noite, Rubem Braga veio parar na minha cama, acompanhado por um bom Cabernet. Assim que me recosto na cabeceira, com o livro sobre as pernas, Goethe também pula em cima do colchão. Cabeça e rabo erguidos no gesto arrogante de sempre, aproxima-se com o passo seguro de quem se sabe dono do pedaço. Cumprimento-o com um beijo entre as orelhas, tomo um gole do vinho e abro as 200 crônicas no meio. No topo da página diz Sizenando, a vida é triste. O resto não consigo ler porque neste momento o gato faz questão de ser gato e deita em cima do texto.


— Goethe! — repreendo-o. — Deixa de ser enxerido, hômi!


Ele me encara desafiante, os olhos azuis semicerrados.


— Ficou com ciúme do Rubem, foi? — pergunto com voz irônica.


É a cara dele! Passo uma mão no pelo branco e abundante no seu lombo para distraí-lo, enquanto com a outra tento tirar o livro debaixo do seu corpo. Ele o segura com a pata.


— Johann Wolfgang von Goethe! — Agora estou ficando chateada. — Você tá amassando a página!


Ele não se mexe. Continua me esnobando com aquele olhar provocador, como querendo dizer: “Você sabe com quem está falando, mocinha?” Suspiro e parto pra chantagem emocional:


— Olha, você já tem seu lugar garantido no cânone. Nem todo mundo tem esse privilégio, sabia? O Rubem tá precisando de uma força aqui...


Mas Goethe não está nem aí para seu colega capixaba, nem parece ligar para a injustiça no âmbito literário, que favorece determinados gêneros e discrimina outros. Pelo contrário: o safado começa a ronronar. Óbvio que ele faz todo esse teatro para obter minha atenção. E isso me faz pensar, mais uma vez, que se tivéssemos outro gato, este daqui não precisaria dessa minha atenção toda o tempo todo. Os dois poderiam se divertir juntos e eu, para variar, poderia escrever ou ler ou dormir tranquilamente sem temer uma emboscada de felino egocêntrico a qualquer momento.

 

Na manhã seguinte tento explicar à minha esposa os benefícios da gente adotar mais um gato.


— De jeito nenhum.


— Mas olha só esses daqui — insisto, mostrando no celular uma foto de cinco filhotes numa caixa de papelão, abandonados no campus da universidade.


— Nem pensar. Já tenho suficiente com as extravagâncias do Goethe. A gente gasta mais em sachê de salmão do que com nossa própria comida.


Deixo quieto por ora, mas durante a semana invisto numa pegada mais psicológica:


— Amor, sonhei de novo com aquele gato...


Ou:


— A gente tem a oportunidade de oferecer uma vida melhor para um gatinho de rua. Não seria maravilhoso?


A resposta continua sendo a mesma.

 

No final das contas, foi o pragmatismo que resolveu o assunto:


— Vocês nem sabem! — anuncia minha enteada certa tarde ao chegar da escola. De um jeito suspeitamente delicado coloca a mochila no chão e, ante os braços cruzados da mãe, para minha alegria e sob o olhar cético do Goethe, tira de dentro um pequeno vulto de pelos vermelhos e olhos assustados; maguinho, quase só orelhas.


— Ele tava comendo lixo na esquina e ninguém ligava — se justifica a menina, antes de qualquer acusação. Os gatos, penso, são que nem os cronistas: a cidade tá cheia deles, e enquanto um alimenta a inspiração observando o vaivém na praça ou pescando conversas jogadas fora no ônibus, o outro alimenta o bucho pescando restos de comida nas lixeiras e espia os transeuntes para apanhar algum afeto ou fugir de um pontapé. Os dois sempre atentos, de ouvidos afiados, sempre em busca de mais uma crônica, mais um restinho de pastel; os dois ignorados na sua arte de viver e sobreviver, esquecidos, invisíveis aos olhos alheios. Felicito mentalmente à minha enteada por ter enxergado e acolhido aquele bichinho desamparado, por ter feito a diferença. Além da vantagem que isso significa para os meus planos gatescos, claro.


Ela pega o pequeno ser trêmulo no colo e o balança suavemente. Pouco a pouco ele relaxa, se entrega às carícias na barriga, começa a ronronar baixinho, fecha os olhos, solta um pum. Esse último ato, ingênuo, infantil, quase humano, era o que faltava para conquistar o coração da minha esposa.


—Tadinho. — Com os olhos mareados, observa o felino feito bebê nos braços da filha. — Olha só, ele tem cara de poeta. Como vamos chamá-lo?


Neste momento lembro da aula passada e, de repente, sei como cumprir minha missão. Sem pensar duas vezes, lanço minha resposta no silêncio pensativo que se fez após a pergunta:


— Rubem Braga!

 

Estou contente. Além de ser fofo e a alegria da casa, graças ao gatinho novo, eu finalmente conseguirei ler, escrever e dormir em paz. Nos primeiros dias, Rubem pula em volta do velho Goethe, morde seu rabo e faz de tudo para ganhar a amizade do seu ídolo. Mas os gatos são imprevisíveis, e acontece que Goethe liga tão pouco para Rubem Braga quanto a Academia: admite sua existência, mas ignora seus méritos e se recusa a dar maior atenção ou dividir o espaço na almofada predileta. Brincar juntos ou lamber as orelhas do outro, então...


No fim da crônica, tudo continua na mesma: eu tentando escrever, Goethe implicando com o mouse ou deitando em cima do teclado, e Rubem Braga divagando pelas plantas da varanda ou observando o ir e vir na rua desde o parapeito da janela. Cada um na sua. Só à noite, quando finalmente estou deitada na cama, mergulhando nas 200 crônicas escolhidas, os dois se unem para atacar meus pés.

 

[*Esta crônica foi selecionada no concurso Prêmio de Literatura Unifor 2021

e publicada na coletânea com o mesmo nome.]




Yvonne Miller nasceu na cidade de Berlim em 1985, mas mora, namora e se demora no Nordeste do Brasil desde 2017. Escreve contos, crônicas e literatura infantil em alemão, espanhol e português. Tem textos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora, 2018), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck Editora, 2021). É cronista do coletivo sócio-literário @bora_cronicar, do blog Escritor Brasileiro e assina a coluna “Isso dá uma crônica” do ColetiveArts. Além de ficcionista é autora e redatora de livros escolares. É uma das organizadoras da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Selo Mirada, 2021). Instagram: @yvonnemiller_escritora