Na fila do osso | Sandra Modesto


por Sandra Modesto__



Eu enfiava a cara no trabalho. Trabalhava mesmo. A sopinha pronta da Nestlé, não perdia tempo com esse negócio de comida caseira. As fraldas descartáveis, o iogurte que ajudava no crescimento, a camiseta de grife, o bife de filé. Por isso eu enfiava a cara no trabalho. A dona Cida babá das crianças do mesmo prédio que eu, me olhava de um jeito como se perguntasse por que eu não parava em casa. Se eu não enfiasse a cara no trabalho, eu não moraria naquele prédio. Meus filhos em escola pública? Nem pensar. E a bola cara para jogar com os amiguinhos ricos, é por isso. Enfiei muito a cara no trabalho. Minha filha fazia inglês na cultura inglesa. Currículo impecável. Valia a pena pagar esses privilégios. Ah daqui a pouco eu vou trabalhar, amanhã eu vou trabalhar. 32 anos assim nessa labuta. É noite. Na tela da TV, o jogo do flamengo. Fico plantada com a bunda no sofá vendo o jogo.


Esse time sempre ganha? Meu filho e meu marido gritam goool! Como se o mundo fosse acabar. Abandono o clima. Pego o celular para falar com minha filha que mora em outra cidade e trabalha numa multinacional por causa do tempo em que eu enfiava a cara no trabalho. Vou dormir rolando na cama comprada em dez prestações. Meu marido trabalha em duas escolas públicas. A gente mora numa casa alugada. É tão bom morar nesse lar. O Chico late muito alto como se cantasse Caetano.


Ao acordar depois da noite vadia que invadiu meu sono, vou ao supermercado encher meio carrinho de compras. A dona Cida está com o olhar distante. Não me reconheceu. Ela tentando comprar uma cartela de ovos, e os olhos famintos chegavam a brilhar. O moço anunciando a promoção do frango, da alcatra e do coxão mole. Meus olhos reviveram a dona Cida quando ela enfiava a cara no prédio, brincando com os filhos da patroa. Ela nunca teve tempo para cuidar das filhas que ficavam na creche enquanto ela acarinhava Davi e Laura. Daqui a pouco tem futebol na TV. Hoje eu comemoro meu próprio gol. O grito feliz por não morrer de tanto trabalhar. Meu filho me conta da atual namorada: Elisa. A Elisa que tem uma irmã chamada Rita, um pai desconhecido e a mãe se chama Maria Aparecida. Meu filho disse que vai ao churrasco do aniversário da mãe de Elisa. Ele levou cervejas. A picanha e o filé de frango eu comprei para dona Cida.

 





Sandra Modesto
nasceu e mora em Ituiutaba, MG. Graduada em Letras, pós-graduada em Educação. Professora aposentada. Autora dos livros “Tudo em mim é prosa e rima” (Editora Autografia, 2019) e “Acenda a Luz”, 2015 (Editora Kazuá). Poemas incluídos em duas antologias: Editora Versejar (2019) e Editora Patuá (2020) Textos publicados em revistas digitais e impressas. É membro do coletivo Mulherio das Letras, nacional. Colaboradora do site: www.cronicadodia.com.br