por Luiz Henrique Gurgel__
Foto: Joel Muniz |
As mãos
iam crispadas no couro preto da Bíblia junto ao corpo, enquanto subia devagar a
ladeira Porto Geral. Desde Cidade Tiradentes vinha pensando e orando, orando e
pensando. Três paus! Daria pra fazer o motor da moto e ainda
sobrava grana para outras coisas em casa, uma TV nova, um computador, quem
sabe. Talvez guardasse algum. Mais provável é que sobrasse nenhum. Mesmo
voltando com as entregas na pizzaria do Grilo, não ia dar grande coisa. Tinha
que voltar a falar com o Dé Louco para umas paradas de motoboy.
Subia no meio da muvuca, do vaivém da cidade: Como tem gente nesse mundo. Três
paus! Silabou devagar e apertava a mão na palavra de Deus: O
Senhor é meu pastor, nada me faltará. Não dava pra falhar.
— Olha o abacaxi, freguesia!! Dois real a fatia, se pegar três, só paga duas.
Olha a água! Olha a água!
Estava calor, o bafo era quente, mas nem tanto para suar assim. O problema era
a japona fechada com zíper até o pescoço, suor escorrendo nas costas, no peito,
na mão que tremia, testa molhada e a subida sem fim, passo lento. Olhava o céu
azul sem nuvens. O Senhor é meu pastor, nada me faltará!
Quatro
anos, 99 a 2003. Ninguém esquece a cana que puxou. Ô! Desculpa aí!, disse quase sem querer para o sujeito que esbarrou nele, na descida, encarando. Também fechou a cara, de volta.
Dona Lívia era a tia de criação do Neguetim, ela era de boa com a turma, sempre
um bolinho no sábado depois do culto para as crianças, antes do futebol. Vai
Tiziuzinho!, torcia o Vô no portão de casa, carinhoso, vendo o jogo dos
moleques na rua. O Vô não gostava de preto, mas do Neguetim ele gostava.
Neguetim era ligeiro, disputado no par ou ímpar. Muito mais disputado depois na
Detenção, onde firmou na Ala 7. Ô caraio! Pra que lembrar disso agora?
Concentra, porra! E a sombra dos edifícios da 15 de novembro aliviava
o calor.
Três paus! Pensando bem, nem dinheiro isso é. Quanto será que vão
dar pro Neguetim? Essa raça de chinês é o que mais tem hoje em dia. Tudo infiel
que vem roubar nosso dinheiro, nosso trabalho. Raça do caralho, comedor de
morcego. A gente nem sabe no que crê essa gente, pior que papa-hóstia adorador
de imagem. Se é que acreditam em alguma coisa, eles adoram os falsos ídolos, as
variedades do Demônio, o Demônio tem muitas faces, é o inimigo. Não esqueço o
que o pastor disse. Não é na China que eles são comunista? Só podia!
— Olha a
máscara! Pano impermeável, todas as cores, já vem desinfetado, mata os
micróbio, protege você e sua família do coronga. Olha a máscara!
Virou no largo de São Bento, pegou a Florêncio de Abreu e sentiu a perna
repuxar. Fraqueja não, porra! Agora não é hora, mil cairão ao teu lado,
e dez mil, à tua direita, mas tu não serás atingido. Cegou com a
escuridão na entrada da loja, mas logo acostumou. O Senhor é a minha
luz e a minha salvação; a quem temerei? O Senhor é a força da minha vida; de
quem me recearei? Quando os malvados, meus adversários e meus inimigos, se
chegaram contra mim, para comerem as minhas carnes, tropeçaram e caíram.
Enfiou a mão dentro da japona, puxou a 380 e engatilhou na cara do chinês,
silenciador na ponta, com a mão esquerda apertou com força a Bíblia na cintura,
O Senhor é meu pastor... Não escondas de mim a tua face, não rejeites ao teu
servo com ira... Tec, tec, tec... tec tec tec e o infiel correu feito corisco, sumiu
para o fundo da loja derrubando guarda-chuvas, caixas de meia, flor de plástico,
cestas com alicates, martelos, chaves-de-fenda...
Bosta! Correu
também, sentido inverso, o mais que pôde, derrubou vendedor, cliente e
mercadoria na saída da loja. Meu Deus, por que me abandonaste?
— Pega ladrão!
Sente o
primeiro pontapé, não cai. Correr, correr, correr, Os ungidos do Senhor...
O segundo foi certeiro, voadora no joelho, o queixo doeu no tranco com o
asfalto, ralou, sangue, depois um chute e mais outro e mais outro e mais outro.
— Filhadaputa!
Um soco
na cabeça e alguém já amarrava as mãos nas costas, mais tapas, mais chutes.
Deitado ficou, cara no chão, joelho gordo e pontudo esmagando o pescoço. Será
que teve aviso do Senhor e não deu atenção? Não percebeu os sinais de Deus? Neguetim
já foi da macumba, vai saber se aceitou Jesus de verdade ou converteu só pra se
dar bem com o pastor. Ele garantiu que a 380 tava lubrificada feito nova. Só
foi tec tec tec tec e nada da porra da bala sair, tranco nenhum, caralho!
Adeus motor da moto, cana de novo até quando? Porra!
Eram três contos pra despachar o chinês pra casa do caralho, do coisa ruim, e
cair no mundo. Bem que o pastor disse, lembrou, são insondáveis os
desígnios do Senhor.