por Adriane Garcia__
Uma
enciclopédia é uma obra que, de forma ordenada e metódica, seguindo um critério
de apresentação alfabético ou temático, reúne todos os conhecimentos humanos ou
um domínio do conhecimento. A Pequena enciclopédia de seres comuns, escrita
por Maria Esther Maciel, é uma coletânea composta por 76 verbetes que
abarcam os reinos animal e vegetal.
Seguindo
a ordem alfabética de um dos nomes populares dos seres, acrescido na linha abaixo
do nome científico (taxonomia), Maria Esther Maciel nos apresenta um
misto de pastiche e paródia, mas é mais: é ensaio na fronteira com a poesia, é
biologia na fronteira com a ficção, é ecologia na fronteira com a política, é
literatura e é ética, é fábula. Ainda há a aproximação com os antigos livros
dos viajantes dos séculos próximos às invasões ultramarinas, também chamadas de
“descobrimentos”. Essa aproximação é dada sobretudo por meio das belíssimas e
sensíveis ilustrações feitas por Julia Panadés. Para cada verbete, ela
fez um desenho da criatura relatada, como se apresentado à “civilização” pela
primeira vez.
Dar
nome é se afeiçoar. Descobrir a idiossincrasia de cada ser é dar-lhe
importância. Essa é uma lição que a zoóloga e botânica “Zenóbia” nos oferece, afinal
desconfiamos fortemente que a autora da Pequena enciclopédia de seres comuns
é, na verdade, esse alter ego de Maria Esther Maciel. Na fantasia pode-se
tudo. Na fantasia o ser ficcional passa a existir, ainda mais quando o que é
imitado é o discurso científico, o campo do saber que aponta aquilo que é. A
persuasão de “Zenóbia” é muito eficiente e saímos da leitura convencidos de que
ela fala a verdade: a verdade de seu conhecimento atravessado pela mística,
pelo mundo onírico, pela lírica. Não é só do mundo aparente que nos fala essa pequena
enciclopédia, mas do mistério, do invisível, do sentido oculto nos viventes, do
pressentido.
Maria
Esther duvida, suspeita, aceita um disse-me-disse, levanta
possibilidades incapazes de verificação laboratorial. Nem tudo será empírico,
ela proclama, concordando que “há mais coisas entre o céu e a terra do que
julga a nossa vã filosofia”. Em um mundo cheio de gente que tem certeza absoluta
de tudo, Maria Esther Maciel dá valor ao verbo “parecer”. É assim, por
exemplo, no verbete que explica o peixe “joão-dias”: “Parece que tem alguma
relação com os cachorros, por causa do “canis” na sua designação científica”.
O
conhecimento para o qual Maria Esther quer nos fazer atentar passa por
mais sentidos que os conhecidos. É como se nos convidasse para voltarmos a ser
uma criança: uma cientista com “sexto” sentido. O olhar infantil que presta atenção em tudo
que se tornará “inútil” e que, por enquanto, é a maior revelação do presente;
tanto que há plantas da infância, dos saberes populares, como a “maria-dormideira”
também conhecia como maria-fecha-a-porta, para a qual dizíamos a quadrinha,
alisando suas delicadas folhas, “Maria fecha a porta que o boi evém”. E
ela fechava. E o mundo nos obedecia. Algo do mundo antigo dos ancestrais, das
plantas curativas, do domínio de avós está nesses verbetes. Em “maria-cavaleira”,
torna-se claro o quanto a criança é a mais capacitada para ver, ouvir, sentir: “Captura
moscas com vontade e não sem ferocidade. Seu canto, dizem, é um brííí delicado,
e poucas pessoas conseguem identificá-lo. Apenas as crianças – e quando muito pequenas
– entendem o que essa maria fala”.
É a
palavra humana que nomeia o ser. Sua existência não está subordinada a nossa
linguagem, mas sua existência para nós, sim. O outro ser, para além de existir,
precisa fazer sentido para nós, não para que ele exista na sua independência
ontológica, mas para que nós não nos coloquemos em risco de extinção. E é assim
que Maria Esther Maciel tenta nos lembrar sobre o direito à vida, por
meio da identificação. É com “joão-grande”
que isso ficará bem claro: “Não se sabe por que tem nome de homem. Mas há
quem prefira chamá-la de “garça-moura” ou “garça-parda”. De sua parte, qualquer
um de seus nomes vale. A nenhum deles faz ressalva.” Os nomes de pessoas dados
às outras espécies mostram que é só a partir de si que o humano conhece o
outro. Na seção “Híbridos”, não são os seres que possuem a característica do
hibridismo, a “bromélia-zebra” não é metade bromélia metade zebra, mas o seu
nome, a partir daquilo que percebemos em separado e juntamos, a torna um ser
híbrido.
Muitos
dos verbetes de Pequena enciclopédia de seres comuns se constituem em fábulas.
Maria Esther dá aos seres de sua pequena enciclopédia profundidade e
interioridade humanas, fazendo com que assim desconfiemos que os outros seres
possuem suas próprias profundidade e interioridade de bicho, de planta, de ser
vivente. É notável um olhar de alumbramento que antecedeu a escrita. É como se diante
da diversidade maravilhosa das outras criaturas a autora nos dissesse: estou
maravilhada e também quero participar da criação do mundo, do reino de sua
invenção. Assim, ela nos oferece o exótico que salta do comum, pois visto pela
primeira vez (ou reencontrado pela primeira vez depois de um longo
esquecimento). É interessante como a autora consegue, em um texto cuja
característica marcante é a delicadeza, fazer com que a violência seja dada em
elementos tão sutis. A Pequena enciclopédia de seres comuns faz-se
manifesto, livro de registro e denúncia dos crimes ambientais, dos efeitos do
desmatamento e dos impactos da pecuária em áreas de floresta, do agronegócio e da
invasão das terras indígenas, da ganância do sistema em que vivemos e da
degradação do planeta (e por que não dizer degradação de nossa própria
espécie).
Diremos
que essa é uma grande pequena enciclopédia, já que saímos convencidos de que é
interminável. Não à toa, “Zenóbia” faz com que a última seção seja nominada como
“et cetera”. Antes disso, encontramos a “maria-cabeçuda”, um pássaro que não se
mistura em excesso e preza a solitude; a “maria-farinha”, um crustáceo que teme
o sadismo culinário humano, capaz de cozinhar um bicho vivo; a ambiguidade de
uma “maria-fedida”, cujo fedor é constrangimento, mas também orgulho e arma; a “maria-luísa”,
que também poderia ser Maria da Penha, falando-nos da violência contra as
mulheres. Temos ainda a desfaçatez da “maria-mole”; “maria-seca” nos lembrando
das questões de gênero e “Maria-vai-com-as-outras” com seu sentimento de
sororidade; um “joão-bobo”, que de bobo não tem nada, apenas finge-se de bobo
para sobreviver, além de “João-cachaça” e os mitos de origem. Notável o humor
que salta em alguns dos verbetes como em “joão-de-barro” “o joão mais óbvio
no reino dos bichos” ou em “saíra-viúva”, já que a função da cientista
catalogadora é traduzir o que vê, mas o que ela nos dá é: “É uma ave
inequívoca, com dotes intraduzíveis”. Em meio a toda essa riqueza textual,
não falta o que nos comova, a exemplo de “cágado-tigre-d’água”, uma das
incontáveis vítimas do comércio de animais. Em “maria-da-toca”, tratando de um
peixe, Maria Esther nos fala de degradação ambiental e da capacidade das
marias de improvisar para salvar sua essência.
Muitas
das qualidades apresentadas na enciclopédia de “Zenóbia” são qualidades que ela
parece desejar ter e assim as atribui ao outro, como a “socó-jararaca” que “Ama
as folhas secas e cultiva a solidão como um privilégio”. Outras são
observáveis em toda uma categoria, como a força das viúvas. Há muitos méritos
em Pequena Enciclopédia de seres comuns; literariamente, o mais
destacável deles talvez seja conseguir trair esse título, iluminando as
diferenças. Não são seres comuns, é uma pequena enciclopédia de seres únicos.
É por
sua própria capacidade de empatia diante da alteridade que Maria Esther
Maciel busca a nossa empatia com os outros seres. Estamos integrados e isso
pode ser uma vantagem ou uma desvantagem, a depender se escolheremos salvar e
sermos salvos – ou destruir e sermos destruídos. Ela mesma, a autora, coloca-se
nesta integração, escolhendo integrar para viver: Maria Esther, uma
maria, a “viuvinha-humana”, pois é sua a imagem – abaixo do verbete – no desenho
de Julia Panadés. Maria Esther é ela mesma um ser híbrido: criatura
e criadora.
Em
meados do século XVIII, na França, Diderot e D’Alembert criavam e
dirigiam a Enciclopédia, com a colaboração de inúmeros pensadores de sua
época (e o óbvio suporte de mulheres invisibilizadas). A Enciclopédia constituía-se,
então, em um símbolo do saber, uma resposta ao obscurantismo religioso e ao
autoritarismo monárquico, uma aliança para o progresso, a democratização do
conhecimento, da ciência e dos valores de uma burguesia em ascensão. No nosso
século, novas enciclopédias são necessárias. Enciclopédias que ouçam a voz das
mulheres, dos povos originários, dos povos mantenedores dos saberes ancestrais,
das aves, dos peixes, dos crustáceos, das inúmeras formas de vida que coabitam
o planeta. Enciclopédias que traduzam o coração pulsante da pedra, da montanha
e das águas. Enciclopédias como essa de Maria Esther Maciel, que
acrescentem sensibilidade à razão, que questionem o progresso como fim em si
mesmo e que, para além daquela que colocou o homem como centro do universo, desmascarando
o Teocentrismo – destrone agora o homem - erigido como um deus – e o coloque como
vizinho, coabitante, partícipe humilde da alma do mundo.
MICO-LEÃO
(Leontopithecus
rosalia)
É um
macaco ruivo-dourado com garras afiadas e juba leonina. Costuma acordar muito
cedo e fica sempre aceso nas primeiras horas do dia. Seus olhos agudos lhe dão
um ar decidido. Às vezes, se mostra agressivo com outros bichos, mas, com os
seus próximos, é bastante dócil e tranquilo. Dizem, aliás, que é um ótimo pai
de família, cuidando muito bem de suas crias. Teme as aves de rapina e a
jaguatirica, sobretudo quando estão com fome. Mas seus verdadeiros inimigos são
os humanos, que devastam as matas, transformando-as em pastos, ou traficam os
macacos não se sabe para onde. (p.90)
VIÚVA-NEGRA
(Latrodectus
mactans)
Tecelã
primorosa, procura urdir suas teias em lugares gélidos e sombrios. Tem pele
negra e lustrosa, com uma mancha vermelha no ventre, em forma de ampulheta. Com
oito olhos, oito patas e uma peçonha perigosa, é uma aranha bastante temida. No
entanto, não se pode dizer que seja propriamente agressiva. Só ataca quando se
sente intimidada. Gosta de comer filhotes de gafanhotos, grilos, saúvas,
besouros e baratas. Às vezes, caça também escorpiões e lagartixas. Sua fama
entre os humanos se deve ao fato de que devora o parceiro após a cópula. Mas
isso acontece não porque ela o mata, e sim porque ele morre. E se a viúva
depois o come, é porque ele já está morto e, ela, com fome. (p.68)
***
Pequena enciclopédia de
seres comuns
Maria Esther Maciel
Ensaio literário
Ed. Todavia
2021
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).