por Wellington Amancio da Silva[1]__
Foto: Thomas Willmott |
A
Richard Plácido
No
universo de Oliveira, cujo pseudônimo é Oitibó, encontramos de vez em quando um
elemento poético cuja potente função metafórica é estar vivo. Esse bicho que
voa e que se comporta num modo particular de ser e estar anuncia algo que
somente sabe o poeta. Quando está aposto num galho ou num fio elétrico chilreia
sempre para si, cheio de si, num reaver de coisas que somente ele sabe; quando
o poeta o observa retira desta cena o seu quinhão momentâneo, uma porção boa de
assuntos, um registro do qual se retira um fio alongado de inspiração. Todavia,
esse bicho não tem lugar no chão duro, não precisando permanecer aqui, e, ao dar
com as asas para o céu também parte com ele a poesia, até que retorne sem
avisar, num aleatório de quem naturalmente é liberto das horas. Justamente o presente
poema de Mayk Oliveira trata das horas e de passarinhos.
Se
o dicionário velho diz que “passarinho” é isto ou aquilo, no cosmos de
Oliveira “passarinho” é coisa outra. Quem sabe um sinal de transcendência em
carne-e-pluma, uma cifra multicor que balouça num céu cinza, uma anunciação, um
bico que bica certas palavras e as põe na retina do poeta, um anjo da guarda do
qual não se aprendeu de todo a decodificar sua linguagem. Dentre os passarinhos
do seu imaginário pessoal os pardais são os mais sagazes; são os únicos
animais de sangue quente e pluma que moram num canto alto da nossa casa e nos
encaram a um metro de distância; e há um especial, um já idoso, o Seu Wiltam
que escapou mil vezes de carcarás e de corujas noturnas e ainda canta
Gonzaguinha à janela do poeta. Logo, dos anos todos de leituras dos seus poemas
eu tenho a impressão de que especialmente os pardais são os obreiros
pós-pentecostais que recosturam o céu que o homem depravou. Pardais são
os santos que temos, em plumagem repleta de pichilinga e de amor. Com efeito, nos
seus poemas de outrora aprendemos claramente que passarinhos se recolhem, rentes,
uns com os outros, e num silêncio reverente permite que a chuva se expresse por
seus infinitos matizes verbais — já os pardais cantam com a chuva.
Contra
os vitoriosos passarinhos-poemas eis o tempo, que não é absoluto nem
senhor. Por isso o poeta é “mestre das ocasiões”, como os pardais. Então,
exercitando o que lhe resta de lucidez, aprende a burlar o tempo para descansar
em seus lapsos, onde a gravidade não incide e não nos envelhece (...e essa
coisa da gravidade não ter vez ele aprendeu com os pardais); o poeta
mesmo faz seu ninho de pardais, um pequeno hiato em que tudo parece
parar para ele escrever — esse hiato-ninho é seu tempo & espaço
particulares. Ninho portátil, versátil, táctil, e ao mesmo tempo
inconsútil, por isso, não é à-toa que Mayk Oliveira conhece os pardais, a
arquitetura espontânea das suas moradas, assim como versos livres... Seu ninho
portátil ele monta e desmonta onde quer, em seguida escreve ou digita uma frase
boa e de sabor, como esta: “Seduz-me sentir o cheiro delicado das flores de
jasmim selvagem...”. A poesia é labuta que não se realiza a sós, pois é
preciso ter amigos bem acompanhados, Amigos que não enlouquecem/por estarem
lendo, escrevendo/protegendo sua amazonas/e sua massa agridoce, encefálica.
Como
os pardais, de som Oliveira entende. Se o passarinho naturalmente possui
um arcabouço sonoro apropriado para louvar a vida o poeta inventa o seu, porque
é mestre da mimese. Empunha uma guitarra desde menino. Sua semiacústica Ibanez
AF75 de 2009 é companheira de guerras em cujo fogo é o som e a vida e a
curtição entre amigos. O caldo de mocotó, o conhaque de alcatrão com limão e
mel, a Pitú faceira, a cerveja no meio da tarde e a música vintage de
vinil e vitrola são métodos bons. Audiófilo, cultiva uma imensa discoteca, que
em outras palavra seria um modo especial de viver o passarinho interior. O
poeta sensível dá ouvidos aos sons do seu entorno e busca decifrar cada
mensagem. Nada passa despercebido, ainda que um som queira anular outro, e a
metáfora da utilidade doméstica não substitui a urgência do voar: Um
chilrear diferente/A panela de pressão substitui/o voo dos pardais. Este
aparente contraste nada mais é que uma sutil harmonia, de tudo posto em seu
lugar —
eis o cosmos de Oliveira. E se da cozinha materna apregoar-se uma chave para
a demanda alimentar, o voo dos pardais é o termo que liga as orações.
É
hora de partir; a moto Honda corre no asfalto em meio aos ipês amarelos; o
mundo é verde e as serras de Água Branca se erguem; agora a cidadezinha, as
fachadas mínimas portuguesas, a feira-livre, Pariconha-AL, meu bem-querer. Sua
outra profissão é fazer preservar saúde e a salubridade geral, um envolvimento
diário e dignificante, embora o grande afã (mais uma vez o tempo...). Na
verdade, seu dia começou, o trabalho: De ombros trincados do peso do mundo/O
dia começa com vozes virotadas. Porque também ele como eu (exceto os pardais)
a quem trabalha para sobreviver não há dia em que não se cante um blues — A semana
está pré-concebida/O seu espectro laboral/aquele que rouba a imaginação... Decerto,
como escreveu Cesare Pavese, “trabalhar cansa” ... Logo, o desejo de vida do
poeta se mostra sempre de tangente em relação ao tempo — essa coisa aperreadora
que passa ligeira, porque diferente da sua profissão de concursado o trabalho
que não se submete à gravidade e ao tempo é o da escrita. O labor da
ficção está alhures ao tempo.
A
realidade é o grande desafio. Aí o poeta exercita certos níveis de liberdade.
Tem suas veredas no meio das amarras do cotidiano custoso, porque Tudo caro
no mercado/Tudo caro para quem sonha. Não obstante, sua perspectiva onírica
se mantém, nem mesmo se dispersa na viagem (O sino diz amém. Quero. Gosto...
Vejo Kafka de ponta cabeça... Dia nublado...). Ele aponta: Cada vez que
olho o relógio vejo caída a espera. Tal frase não demonstra pessimismo (sua
profissão é fazer preservar saúde e a salubridade geral) — saber
estender a mão ao caído, mesmo a senhora Espera estende as mãos ao bom
samaritano. Aprendeu a voar com os pardais, compreende que esse bichinho
não cai; descobriu como não cair. E ao final, a beleza deve predominar. O cenário
poético é posto, o Eden, está posto — a Natureza derredor. É como se fosse a
primeira palavra de um Walt Whitman, ou de um Horacio Ferrer: “Madre Tierra
Madre mía, ya navego tu placena. Voy braceando por tu carne, siento ganas de
nascer...”. Porque Oliveira também é uma árvore de sombra rica, Olea
europaea, uma árvore de acolher passarinho. Não há ruas, profissões,
pelejas, trampos, salários, despesas por cima de sua Fronde. Deste modo, as
cenas poéticas deslisam por cima das cenas da vida real. Sim, por cima da Fronte
há uma auréola de habitar passarinhos. Penso que certos poemas de Mayk Oliveira
são seus pardais — dele vida e obra não se separam. E ainda em cima da
Fronde é onde vivemos agora. Por isso, não vos preocupeis! Chegará em breve
o abraço/A música continua.
.
A semana está pré-concebida
O seu espectro laboral,
aquele que rouba a imaginação
e o Eden, está posto
Amigos forçados ao tratamento
de pinga e camisa de força
Amigos que não enlouquecem
por estarem lendo, escrevendo,
protegendo sua amazonas
e sua massa agridoce
Há os enlouquecidos por isso
mesmo
Uma voz maternal nos avisa
De ombros trincados do peso do
mundo
O dia começa com vozes
virotadas
de um passeio pelo mundo livre
Tudo caro no mercado
Tudo caro para quem sonha
O sino diz amém. Quero. Gosto.
Seduz-me sentir o cheiro
delicado
das flores de jasmim selvagem
Vejo Kafka de ponta cabeça
e Wiltam alaranjado querendo
escutar "Diga lá
coração" de Gonzaguinha
Dia nublado. Áspero às 11h
Cada vez que olho o relógio vejo
caída a espera
Chegará em breve o abraço
A música continua
[1] Wellington
Amancio da Silva é professor da rede pública, tradutor, músico e mestre em Ecologia
Humana. Publicou livros de ficção e de ensaios. Publicou-se dezenas artigos
acadêmicos em revistas especializadas. A convite contribui à equipe editorial
da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca. Fundou as
Edições Parresia em 2019. Destacam-se Ontologia e Linguagem (2014), Figuras da indiferença (2019), Gumbrecht leitor de Martin
Heidegger (2020), o reneval (2018), Primeiros poemas soturnos (2009), Apoteose de Demerval
Carmo-Santo (2019), Os outros, sertão de argila escura (2021). Há
publicações avulsas nas revistas Mirada, Ruído Manifesto, Germina, Gazeta da
Poesia Inédita (Portugal), Magma (USP), Revell (UEMS), Letras Raras (UFCG),
Literatura & Fechadura, Aboio, Diverso Afins, 7Faces, Eutomia (UFPE), Sítio
(Portugal), Tyrannus Melancholicus.