por Germana
Accioly__
Alguns
dias seguem atravessados.
Este
termo, ouvi a primeira vez da minha avó Lindalva. Ela, quando não estava bem,
dizia: “Hoje estou meio atravessada”. Eu, pequena, antes ainda dos 5
anos, ficava tentando decifrar esta expressão. Tentava entender. A gente
atravessa a rua, mas ela não atravessa a gente, eu pensava.
Hoje
entendo.
Tem
coisas que nos atravessam. Grandes dores, alegrias, acidentes, surpresas. Somos
vias de sentimentos, somos estradas vividas, rios sazonais.
Pessoas
atravessam a nossa existência. Nos atravessam...
Vovó falava
de sentimentos desencontrados, quiçá desconhecidos. Eu falo, quando uso esta
expressão, daqueles dias em que a gente acorda no ontem. Você abre o olho e
está na memória sensorial. Aquela que é acionada por um cheiro, um sabor, uma
palavra, um gesto, um olhar.
Às
vezes o perfume de manteiga chiando na frigideira me lembra os almoços das
férias: bife passado rapidinho, para não tomar o tempo da praia. Acompanhava um
macarrão, com molho de tomate industrializado e era delicioso, eram férias! A
variação deste cardápio era salsicha quase queimada na grelha... displicência
deliciosa.
Algumas
vezes, seguro firme nas memórias para prolongar o seu frescor. Mas... nem
sempre.
Existem
vivências que seguem adormecidas, quando jurava que estavam mortas. Atravessam
o peito de dor. Flechas afiadas, no alvo da alma. Nem sempre nomeadas, são as
travessias maiores, mais profundas.
A gente
não escolhe quando vai disparar. Ontem comecei uma travessia. O gatilho foi tão bobo,
um debate acalorado à mesa, arrodeado de amor. Existe um sentimento muito forte
e profundo que é o de conversar com um filho adulto. A gente passa a vida
protegendo e ensinando. Eis que um dia, a roda do tempo mostra que há muito o
que aprender. Mostra mais: outras coisas, invisíveis aos seus olhos,
atravessaram aquele ser que você se esmerou em proteger a vida toda. As
palavras não são exatas quando traduzem sentimentos.
Me dei
conta da dor que senti e joguei embaixo do tapete porque era grande demais para
eu carregar. Passaram-se 25 anos. Ela não se desintegrou ou sofreu mutação.
Veio fresquinha, como pão comprado ao sair do forno. Veio com cheiro, sabor, o
mesmo mal-estar (eu queria escrever MAU-estar, porque é assim que sinto, mas o
corretor acaba ajustando) ... talvez sejam as duas coisas.
Conversar
com os filhos é um prazer, como eu dizia. Mas pode ser também um portal.
Atravessei este portal, ou ele me atravessou... e me peguei acessando a dor que
eu não acolhi. Hoje acordei e ela estava ao meu lado, na cama. Já meio murcha,
gasta de tanto que eu andei sentindo, mas viva. Queria desidratar esta dor até
a morte. Queria que esta memória evaporasse.
Descobri
que a única forma de matar era enfrentando, usando, oxidando, molhando.
Aproveitei o meu domingo para dançar com ela. Abraçada, revivi tudo, revirei a
minha ingenuidade ao avesso. Descartei a mania de romantizar o absurdo e, ao
final do baile, espero que ela tenha ido definitivamente. O tempo do
recolhimento é a convalescência deste processo.
Quero
voltar à mesa, sentir a mesma alegria, sempre pronta para outra travessia.
Germana Accioly é escritora e jornalista. Publicou “Não é sobre você” (Selo Mirada, 2021). Escreve no blog Perder de Vista