[Um homem pragmático] | Wellington Amancio da Silva

 por Wellington Amancio da Silva__



Digital Solacism




Porventura não sou a tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo em que me tornei tua até hoje?

                                                                                                                         Números, 22:30

                                   


Hermógenes Theodoro desistiu da Sociologia, no momento em que lançou no rio sua dissertação não revisada de trezentas e poucas laudas (o tema nos é obscuro). Realmente gostava de escrever esporadicamente em guardanapos — papéis fofinhos que se desfaziam em bolsos umedecidos de suor: “A solidão é sempre muito mais prática a qualquer tentativa de exercer a cidadania” — costumava escrever. E escrevia sempre enquanto tomava umas pingas; sem as pingas raro escrevia.


O curso impregnou-lhe o espírito de conceitos sobre “justiça”, “igualdade”, “classes sociais”, “democracia”, “alienação”, todavia, seu tema predileto era a solidão. Être-democrate, c'est quoi? Pensava na solitude das mesas vazias de boteco, lá fora, onde gastava suas horas e, entre um gole e outro, iam-se também acabando as suas canetas. Naquela tarde — tal como as más línguas o diziam — Hermógenes estava sentado com alguém que há dois minutos não conhecia — bastava-lhe que compartilhassem uns goles, conversassem sobre qualquer coisa e que depois desaparecesse! Raramente cultivava amizade com gente de mesa de bar. Pôs os lábios no copo americano e entranhou a aguardente num só gole. Franziu a testa com dois vincos entre as sobrancelhas e apertou os dedos. Sem perceber, ajuntou as pernas à simetria da cadeira (pressão testicular, sintonia cósmica).


O tejo ansioso mudou-se em calmaria, porque logo esqueceu-se do curso, dos livros, das aulas e da obrigação de escrever sobre o que não gostava. Mais um gole de pinga e surtiu-lhe um calor bravio no pé da barriga — era como se cirandassem, no chão estomacal, uns vulcõezinhos sorridentes. Era de um deleite enorme, tão grande que esqueceu as úlceras — sobretudo as ideológicas. Beber se insere num ritual maior de elevação daqueles aspectos inomináveis do ser, que não se explicam, mas somente se experimentam, ele pensava. Seu “companheiro” de mesa olhava-o com devotada atenção (porque bebia de graça). Este possuía cabelos grisalhos sobre as duas órbitas amareladas, e ofertava-lhe um sorriso amigo, plástico, desses que se tornam muito enigmáticos quanto mais se esticam num branco de dentes.


Ouviram de repente um rumor apressado de bêbados, como se espantassem uns cães (na verdade, aquele setor onde estavam era lugar repleto de cães). Rente à mesa de plástico passa rodopiando um casal veloz de cães, acoplado. O “companheiro” de mesa finge não ver, mas Hermógenes abaixa a cabeça envergonhado, enquanto derredor, num reboliço de pernadas, alguém, contra o casal de cachorros, lança do seu próprio copo uns restos de cerveja e braveja: “Cachorros dos infernos da febidurrato! Vão-trepá-pacas-da-pes-te! Não quero ver isso, não, seus vagabundos! Cachorro!”. Alguns ali fingem que nada acontece, outros pigarreiam uma ou duas vezes e voltam a beber e conversar. Agnaldo Timóteo canta numa radiola: “Se algum dia/a minha terra eu voltar/quero encontrar/as mesmas coisas que deixei...”. Inesperadamente tremia o queijo do seu “companheiro” de mesa e ele começou a chorar muito alto, como uma criança, todavia era um choro tão feliz, aparentemente, cheio de sinuosidades vocais e melismas, que ele se contorcia e erguia as mãos com os dedos abertos, em forma de ganchos, como se estivesse possesso de uma euforia inefável, como se quisesse arranhar o vazio. Seu rosto estava muito banhado de lágrimas, seus olhos vermelhos, as pipilas dilatadas e ele sorria. Não se sabe o porquê, mas Hermógenes pôs-se a gargalhar longamente, de modo que as pessoas o olhavam.


— ...Lembrei dele tão fortemente que por um momento senti ele aqui, sua presença. — disse o “companheiro” de mesa.


— Quem?... — disse Hermógenes.


— Meu irmão... — respondeu — “Meu irmão. Ele era muito católico. Um grande homem. Do tipo que amava a caridade. Na época ele ouvia muito essa música, todas as tardes de fim de semana. Foi na época da grande construção da represa de Xingó. Ele era um encarregado.


— Tá vivo?

— Meu irmão Pedro Lima? Não...

Hermógenes agitou-se na cadeira.

— Valei-me, ó!... — disse ele.

— Brincar com o quê? — retrucou o “companheiro”.

— Pois então não brinque! A vida é um porrete!

Ao redor alguns pareciam ouvir a conversa.


— Não! Não! A vida, não... Mas a morte é a jumenta de Deus!! — proclamou o “companheiro” de mesa, num brio etílico naturalmente profético.


— Pois então termine a história, “companheiro”, que eu quero saber! — Hermógenes o solicitou de mãos juntas para o alto.


— Eu vou contar pra você, não se preocupe... É que no trabalho do meu irmão de repente chegou um, vindo não sei de onde. Procurava o que fazer, recebeu o cargo de auxiliar. Era bem moço e estava péssimo, sem dinheiro, sem comer, não tendo onde ficar. Meu irmão o acolheu. Ele se chamava Tavares. Trouxe ele pra casa e logo ele comia o pirão em nossa mesa. Contava casos de sua cidadezinha mineira, que não lembro mais o nome. Ele e meu irmão se deram muito bem. Se tornaram parceiro e até andavam juntos por aí. Numa dessas, ficaram por lá, na construção, o dia todo e a noite. Meu irmão não veio para casa no dia seguinte e de noite a notícia: ‘...Encontraram teu irmão numa encosta de terra e mato, morto, mais de 70 facadas’. Quando eu vi não reconheci ele... desfigurado mesmo, todo furado, uma humilhação das grandes. O assassino sumiu no meio do mundo, pra nunca mais... Todos aqui ficaram chocados com a notícia da morte do meu irmão, principalmente na situação calamitosa em que ficou seu corpo, todo perfurado, roxo, torto, lavado de sangue, já ajuntando tapurus. Foi a maior comoção, aqui, no município: só se via as velhinhas chorando. A polícia rodou tanto e tanto e sem parar, que você via mesmo nos olhos deles de farda aquela ira, que é uma vontade medonha de pôr as coisas em ordem, de vingar, de implantar a justiça com gosto de gás, de prender o bandido e dar a ele uma lição, mas não... o diabo sumiu, e até hoje... E depois?, Eita sepultamento difícil: nossa mãe desmaiou umas três vezes; isso tudo foi em março, pode contar, que em julho, acamada, coitada, morreu de desgosto, tenho certeza (porque no sétimo dia do seu enterro eu vi vestida toda de preto, cabelo branco branco, longo e solto, no fim do muro de casa, olhava para mim em silêncio, bem triste, que Deus a tenha; já meu irmão, ah, nem deu sinal, nem em sonho, sumiu do mapa de todo lugar mas, é porque dizem que gente que faz bondades quando morre vai a um recanto do céu que não tem quem alcance..., amém.). Depois disso tudo, meu amigo, perdi logo a noção do que estou fazendo no mundo; já eu não era casado e não tinha filho, comecei a andar solto, e até hoje, pra não ficar sozinho em casa, olhando paredes brancas, porque eu detesto o branco porque me lembra o céu cheio de marasmo. Já eu mesmo hoje não quero mais saber de mais nada; só a bebida me traz um refrigério... um deus dentro de uma garrafa... e eu me conformei com esta vida, aqui, só contando o tempo de cumprir essa missãozinha de viver vagueando, esperando fechar a conta da vida e morrer... como uma vela pequena que se finda de leve e devagar, queimando... a vida já era bem difícil, por causa desses homens da política que parecem que nunca enxergam o povo, ficou pior quando perdi todo mundo... não tenho coragem de fazer besteira, Deus me livre, mas já ‘pendurei as chuteiras’, que é outra forma de morrer, e é como se eu não sentisse o dia que vai passando e o dia passa e já é de noite e eu já acordo afobado no outro dia. Só a bebida me traz um refrigério... ó, santíssima cachaça!, deus dentro de um casco! ...rapaz deixa eu te dizer: eu me conformei de tudo, mas com a morte do meu irmão, eu nunca me conformei; se tivesse morrido de doença, de morte comum morrida, se fosse tragado pelo rio ou caído do andaime, eu me conformaria... mas daquela forma que te contei? Oxe, nunca e nunca! Desculpe falar todas essas coisas...”.


— Realmente a morte é a jumenta de Deus! — sussurrou Hermógenes.

— Eu disse!


Por sua vez, Hermógenes retirou a caneta do bolso da calça e escreveu: Percebo que a democracia, do tipo grega, é algo muito pequeno para quem não vive em paz consigo mesmo. No bolso da camisa pôs com cuidado aquele texto de guardanapo redigido caprichosamente e em letras cursivas. Mais tarde sua camisa estaria encharcada pela chuva, porém, ele não se importaria em perder o texto — Sin democracia, la libertad es una quimera! Ainda com o queixo grudado no ombro olhava para baixo, enquanto ajeitava no bolso o guardanapo dobrado. Na verdade, estava pensando na história. Estava indignado, mas não queria demonstrá-la, pois não saberia o que dizer, portanto, escondeu-se neste gesto de remexer no bolso o guardanapo dobrado. Seu “companheiro” de mesa o observava; estava aguardando uma palavra, ao menos (que é o mínimo que se faz numa mesa de boteco diante de uma história daquelas). Hermógenes disse duas ou três palavras desconexas.


Outra vez, um bêbado tange uns cães com imprecações de todos os tipos. A Lua os olha com indiferença. Depois disto, apesar de uma dor difusa, Hermógenes e o “companheiro” de mesa se esquecem do que estavam conversando.

 

 

Delmiro Gouveia, 13 de agosto de 2019



Wellington Amâncio da Silva nasceu em 1979, em Delmiro Gouveia, Alagoas. É professor graduado em Pedagogia e Filosofia, e tem mestrado em Ecologia Humana. É músico multi-instrumentista e produtor musical. Publicou-se: Ontologia e Linguagem (2015), Pensar a Indigência com Michel Foucault (2018), Gumbrecht leitor de Heidegger (2019) e Conceito de modo de convivência (2018), além de dezenas de artigos científicos. Em literatura publicou-se: Apoteose de Dermeval Carmo-Santo (2019), O Reneval (2018), O Quasi-Haikai (2017), Epifania Amarela (2016), Distímicos e Extrusivos (2016), Diálogos com Sebastos (2015), Primeiros poemas soturnos (2009) e Elegia da Imperfeição (2001). Editor das Edições Parresia. É membro da equipe editorial da Revista Utsanga — Rivista di critica e linguaggi di ricerca.