A arte como libertação: uma entrevista com o escritor Rafael de Oliveira Fernandes

 por Marcela Güther

 




A morte, as perdas durante nossa vida. A redenção diante dos erros do passado. A solidariedade que encontramos nos outros.  O papel da arte como maneira de olhar para o outro, para nós mesmos e como forma de libertação. Essas e outras questões existenciais são apresentadas de forma simples, delicada e poética em “Baseados em fantasmas reais” (ed. Patuá, 189 p.), do escritor paulista Rafael de Oliveira Fernandes, também autor dos livros de poesia Menino no telhado (2011, ed. 7letras), e Cadernos de espiral (2014, ed. 7letras) e do romance Vista Parcial do Tejo, (2018, ed. Patuá).


Em “Baseado em fantasmas reais”, uma mãe desaparece de casa sem que a polícia encontre explicação. Anos depois seus filhos encontram um texto de ficção, aparentemente deixado pela mãe, em que a personagem principal abandona seus afazeres e foge de casa num ímpeto. Logo, começam a imaginar que ela pode ter agido exatamente como a personagem. O narrador da história retoma as buscas pela mãe. Todos os dias percorre a cidade parando apenas para almoçar na lanchonete "Anos Dourados" um lugar onde o tempo parece não passar. É um local em que os garçons se fantasiam de estrelas da década de 60 como Elvis Presley e Marilyn Monroe, e onde o narrador conhece Nina, uma adolescente inteligente e sensível que busca pelo seu gato, Donatello, também desaparecido.


Os dois desenvolvem uma forte amizade e a partir daí, além da busca do narrador pela mãe, acompanhamos sua jornada existencial em que, através das memórias, questionará seu futuro. Nina, por outro lado, além de tentar encontrar o gato, buscará o próprio caminho ao adentrar a vida adulta. Enquanto conversam ou caminham pelas ruas do bairro, o narrador e Nina tentam manter seus fantasmas vivos, buscando-os e rememorando-os.

 

O desejo do autor foi escrever um romance em que houvesse a intersecção entre ficção, filosofia e autobiografia. Para Rafael, a melhor literatura trata de temas perenes, que transcendem tempo e espaço e afetam a todos os seres humanos. “As questões do espírito, da posição do ser no universo, o enfrentamento da morte, as relações humanas, são temas que estão aí desde o início do desenvolvimento da literatura, da pintura, passaram pelo Renascimento, e continuarão afetando o ser humano nos próximos milênios.”


Confira abaixo a entrevista completa com Rafael de Oliveira Fernandes:


1 - Quais são as suas principais influências literárias?


Os autores que mais me influenciam são Fiódor Dostoiévski, Jorge Luis Borges, Haruki Murakami e Guimarães Rosa. Os enigmas propostos por Borges espelham os enigmas da nossa existência. Murakami encontra a magia ao lado do cotidiano, o estranho ao lado do comum, assim como Guimarães Rosa, cujos personagens vivem suas epifanias nos cenários mais simples e nas circunstâncias que todos podemos viver. Todos eles relacionam o ser humano ao desconhecido, ao místico, ao infinito, que paradoxalmente está bem ao nosso lado, faz parte de nossas vidas. Dostoiévski, no entanto, é o meu escritor preferido uma vez que defende essa ideia de forma mais direta, ou seja, a total indissociabilidade entre a literatura e a sua filosofia, a escrita e seus ideais. Para ele o eterno e o místico fazem parte da própria substância do ser humano, não sendo encontrados apenas em espelhos ou momentos de epifania, sequer em espaços especiais ao lado dos nossos espaços cotidianos. Estão em todos os espaços. E surgem ao enfrentarmos a vida com coragem e ao descobrirmos quem somos. Daí afirmar através de um de seus personagens que a beleza salvará o mundo pois ela é a sua essência. É capaz de nos aproximar da verdade. Ela aparece ao enfrentarmos as dificuldades do mundo, as perdas, ao passarmos pelo sofrimento, pela constante ameaça da nossa mortalidade, e isso é algo que procuro explorar sempre na minha literatura.

 

2 - Que livros influenciaram diretamente a obra?


Os livros que mais influenciaram “Baseado em fantasmas reais” foram “Após o anoitecer”, do Haruki Murakami, “O Aleph”, do Jorge Luis Borges e “O lobo da estepe”, do Hermann Hesse.

"O lobo da estepe" se utiliza de inúmeras digressões em que o personagem principal expõe sua ética e posições filosóficas. Além disso ele o faz apoiando-se em exemplos de diversos artistas e obras clássicas, seja da música seja da literatura, contextualizando essa estreita ligação entre a arte e a filosofia. "O Aleph" apresenta inúmeros contos em que se faz uma espécie de ponte entre este mundo e o outro entre o finito e o infinito como se o infinito pudesse ser encontrado ao nosso lado, numa livraria, numa obra de arte, num templo etc. Essa ponte eu procurei estabelecer no meu romance e é encontrada também nessa obra de Murakami, na garota que está dormindo há mais de um ano, quase entre o mundo real e o dos sonhos o livro todo. Além disso, no romance, há um café ou um bar em que dois adolescentes costumam se encontrar sempre ao som de grandes nomes da música enquanto inspiradamente debatem suas questões existenciais demonstrando mais uma vez a estreita ligação entre a arte e a filosofia, entre estas duas e a nossa libertação, ou seja, como elas são os instrumentos através dos quais encontramos nosso caminho. É claro que esse foi um grande mote do meu livro e quando os meus dois protagonistas estão perdidos seus debates existenciais, a música e a arte em geral também os direcionam.


3 - O que motivou a escrita do “Baseado em fantasmas reais”? Como foi o processo de escrita?


Eu quis apresentar de maneira simples e poética ao leitor algumas de minhas questões existenciais. Por isso a dinâmica entre o narrador e a amiga adolescente cujas conversas na lanchonete vão iluminar suas hesitações. Há essa aproximação da literatura e da filosofia. Um debate entre os dois personagens e também um debate de cada um com seu interior. Cada capítulo foi construído na forma de uma pequena cena com a exposição de uma memória, um afeto, ou um medo que levou à solidão. Com sorte, através de cenas envolventes e a criação de um forte vínculo emocional com os personagens, os leitores também participarão do debate e aquelas questões também os interessarão.

 

4 - Se você pudesse resumir os temas principais do livro quais seriam? Por que escolher esses temas?


A morte, as perdas durante nossa vida.  A redenção diante dos erros do passado. A solidariedade que encontramos nos outros.  O papel da arte como maneira de olhar para o outro, para nós mesmos e como forma de libertação. Queria construir um romance em que houvesse a intersecção entre ficção, filosofia e autobiografia. Debater os dilemas psíquicos e filosóficos dos personagens, os mistérios do universo, mas fundindo seus dramas e as questões metafísicas à estrutura do texto de forma orgânica. Trazer outras obras de arte como exemplo de como a arte pode ser libertadora. O próprio texto deixado pela mãe do narrador no início do livro que expõe o drama existencial de uma dona de casa que abandona tudo de repente e ao mesmo tempo é a força motriz das ações dos demais personagens é uma forma de libertação.

 

5 - Qual a principal mensagem que você quis passar com a obra?


De que a melhor literatura trata de temas perenes, que transcendem tempo e espaço e afetam a todos os seres humanos. As questões do espírito, da posição do ser no universo, o enfrentamento da morte, as relações humanas, são temas que estão aí desde o início do desenvolvimento da literatura, da pintura, passaram pelo Renascimento, e continuarão afetando o ser humano nos próximos milênios.


6 - Como foi usar um narrador tão próximo ao autor em "Baseado em fantasmas reais"?


A tensão entre o narrador e o autor é parecida com aquela estabelecida pelos planos que conversam entre si no livro (este mundo e o outro, o real e a ficção, o cotidiano e o poético, por exemplo). Como autor, converso com o narrador buscando um mútuo entendimento. Uma proximidade. Procuro me compreender através de suas reflexões assim como o narrador procura compreender a si próprio através de suas ações. É mais uma relação/ tensão horizontal do que vertical contudo. Eu me coloco no mesmo patamar embora perceba as questões do narrador do alto, digamos dessa forma, assim como o narrador, embora tente fazer com que suas questões, através do entendimento, alcancem um lugar mais elevado também, o da alma, coloca sua alma no mesmo patamar dos acontecimentos sensíveis. À primeira vista parece haver uma tensão real, um desnível entre o narrador e sua consciência (mais elevada a partir do momento em que as ações passam pelo filtro do entendimento) assim como parece haver um desnível entre o autor e o narrador (eu sendo uma forma de consciência sobre aquilo que ele compreende ao longo do livro). Mas trata-se de atravessar portas mais do que subir escadas para alcançar o entendimento tanto para mim como para ele (para o narrador acerca dos fatos, para mim acerca do que ele pensa). Embora algumas vezes no livro haja a indicação de pular muros e subir escadas, pode ser uma metáfora para indicar um entendimento superior que na verdade está ao lado, ou dentro.

 

7 - O que a lanchonete Anos Dourados representa em seu livro?


Representa um mundo onírico, à primeira vista representa quase uma falha no bairro, parece existir em um tempo diverso. No entanto, ela simplesmente existe ali junto com as casas que habitam o tempo presente. O narrador sai da lanchonete para as ruas do bairro e vice-versa e não é preciso empreender uma complexa viagem temporal como num filme de ficção científica. Ou como num filme de ficção científica mais sofisticado, espero, conseguimos acreditar que basta um passo para estarmos em outro mundo. No livro basta atravessar a porta giratória da Anos Dourados por exemplo.

 

8 - No livro, há uma forte presença dos gatos, que são vistos como criaturas mágicas que podem transitar entre os dois mundos. O que essa figura significa na história?


É uma ponte entre a vida e a morte, entre este mundo e o outro, o mundo do narrador e o de Nina. A Nina tem uma relação com o gato de muito afeto e de grande compreensão de seus gestos e necessidades. Por isso o narrador quase imediatamente percebe nela uma qualidade rara de ‘falar com fantasmas’, que nada mais é que uma relação especial com o mundo, uma capacidade de comunicar-se com as pessoas, estejam elas próximas ou distantes, neste mundo ou no outro. Esta comunicação não tem nada de sobrenatural, claro, pelo contrário.

 

9 - Você escreve desde quando? Quando começou a escrever?


Escrevo desde criança criando histórias em que eu mesmo e meus amigos éramos personagens. Na adolescência surgiram alguns poemas. E já na faculdade com estudos sobre teoria literária, a leitura de livros clássicos, além de alguns contemporâneos que hoje se tornaram meus colegas, surgiu a ideia de que poderia transformar meus textos em livros.

 

10 - O seu processo de escrita de um romance e o processo de escrita de poemas é diferente?


Os poemas surgem a partir de imagens. De uma sensação ou um sentimento de beleza. A partir dessa imagem eu procuro elaborar uma pequena trama de versos, um conceito. E então atribuir-lhe um sentido que parecia estar subentendido em minha imaginação.  Para os capítulos de um romance o processo é quase o oposto, ou seja, há uma história ou um evento que surge e só depois eu tento atribuir-lhe um substrato literário. Assim, a partir daquele fato que parece interessante eu tento criar imagens, construir o cenário, descobrir se o evento pode existir como obra de arte também para outras pessoas, se consigo comunicá-lo da forma adequada e interessante.

 

11 - Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma meta diária de escrita?


O meu ritual consiste em fazer anotações das ideias e histórias que acho interessantes. Depois tento expandir essas primeiras anotações criando uma espécie de quadro em que separo as ações em capítulos e nos capítulos enumero os acontecimentos mais atraentes.

Isso me permite uma espécie de visão panorâmica da obra, no caso de um romance, e apenas depois de conhecer bem os personagens e eventos, de observá-los por vários ângulos, começo a escrever efetivamente o que seria em média um ou dois capítulos por dia.

 

12 - Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação?


Sempre através da leitura. Eu retorno aos meus autores preferidos ou busco autores que não conheço ainda, mas que são bem recomendados, de preferência cuja obra tenha alguma similaridade com o assunto sobre o qual esteja me debruçando.

 

13 - Quais são os seus projetos futuros na escrita? Planeja outro livro?


Estou pensando em um novo romance. Imaginei uma ambientação. Alguns personagens. E suas motivações. Mas estou no início do projeto ainda. Na fase de criação daquele quadro para poder conhecer os personagens e para onde caminharão.

 

 



Rafael de Oliveira Fernandes
, nascido em São Paulo, capital, em 1981, formado em Direito pela USP, autor dos livros de poesia “Menino no telhado” e “Cadernos de Espiral” (editora 7letras), e do romance “Vista parcial do Tejo” (editora Patuá)







Marcela Güther
- Sócia e diretora de conteúdo e relações públicas na com.tato. Está à frente do serviço de assessoria literária, auxiliando autores e editoras a divulgarem seus trabalhos na mídia. Já foi redatora de portais de literatura e revisora de livros e publicações literárias. Organiza o clube Leia Mulheres de Joinville (SC) desde 2017.