por Fernanda Coutinho__
Clarice
Lispector, no coração do Recife é o título da dissertação de
mestrado de Henrique Inojosa, transformada em livro, pelo Selo Mirada, em 2021
e do qual participamos do lançamento, no Centro Cultural do Banco do Nordeste –
CCBNB, em Fortaleza, em uma chuvosa tarde de abril.
Em
primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Henrique Inojosa e à Taciana Oliveira o
presente que me deram com a oportunidade de ler este livro, que, entre tantas outras
rubricas, poderíamos definir com o adjetivo amoroso.
E
o registro amoroso é perceptível logo no título que, como vimos, traz a palavra
coração associada a Clarice e a Recife. Quanto à escritora, a palavra coração,
além de expressar o vínculo afetivo do laço Henrique-Clarice, traz de imediato
à memória a sonoridade do nome de seu primeiro romance: Perto do coração
selvagem. E quanto a Recife? Essa cidade seria, para a escritora, durante
toda a sua vida, um ponto de ancoragem das vivências da sensibilidade. E
sabemos que um vasto rol de cidades percorreu a existência da Clarice, cuja
vida foi marcada pelo signo da viagem. Desde a primeira, longa viagem da Europa
Oriental para o Brasil. Da remota Ucrânia, da pequena Tchetchelnik, mais
especificamente, sua cidade natal, até Maceió, quantos portos a atracar! Muitas
outras aparecem na sequência: Rio de Janeiro, Belém, Nápoles, Berna, Torquay
(Inglaterra), Washington, novamente, Rio de Janeiro. E, ainda uma vez, Recife,
na breve visita em 1976.
Todo
esse périplo trepidante, contudo, não foi capaz de apagar as marcas da infância
recifense. Criando-se um vínculo da escritora com o poeta Manuel Bandeira, é
possível afirmar que o Recife seria sua Pasárgada, sua terra de
encantamento.
Por
que a capital pernambucana seria tão especial para a escritora durante toda a
vida? Recife, para ela, foi o lugar onde se descobriu como pessoa, como filha,
como irmã e, até como escritora, mesmo que seus textos apresentados à seção “O
diário das crianças”, do Diário de Pernambuco não tenham sido estampados
em suas páginas. Nesse caso, pode-se dizer que foi em Recife que Clarice
descobriu, inclusive, o drama da linguagem. O episódio do Diário de
Pernambuco deixou-lhe a primeira inquietação sobre o que é escrever de
forma inusitada, trouxe-lhe o primeiro desafio quanto a padrões de escrita já
bastante experimentados, aquelas que se alimentavam de fatos. Clarice, quanto a
si, preferiu, desde cedo, escrever sobre sensações, quer dizer, sobre as
vibrações do coração, que muitas vezes são difíceis de ser traduzidas.
Clarice
Lispector, no coração do Recife é amoroso, ainda, pela extensa
lista de agradecimentos a claricianos e claricianas com quem o autor trocou
ideias, informações e inquietações sobre o livro. Na verdade, a lista revela uma
troca de afetos entre o autor e todos esses nomes, que gravitam em torno da
romancista, porque Clarice tem esse dom de irmanar seus leitores e estudiosos e
todos findam por palpitar em um mesmo ritmo cordis.
Quando
adentramos o livro de fato, percebemos que, num gesto afetuoso, Henrique
Inojosa toma a mão de seu leitor e o conduz aos sítios da meninice de Clarice.
Se as ilustrações, ao longo das páginas, já dão conta dessa intenção, o que
dizer do texto, com um pendor à plasticidade, que proporciona fotografias e
fotografias do Recife dos anos 20 e 30, do século passado? Todas elas são
emolduradas pela mão e pelo olhar atento do historiador e nós, leitores, somos os
grandes premiados com esses relatos sobre lugares e gentes.
Para não deixar dúvidas, quanto a seu
propósito, Henrique acrescenta como anexo à publicação o Roteiro
Histórico-Cultural Clarice Lispector, uma seleção iconográfica das paisagens
mais afeitas à escritora em, pode-se dizer, sua cidade-berço. Seriam as suas
“paisagens originais”, para retomar o belo e sensível título de Olivier Rolin,
ao sondar o período da infância de cinco grandes escritores do século XX: Jorge
Luis Borges, Vladimir Nabokov, Ernest Hemingway, Henri Michaux e o japonês Yasunari
Kawabata.
Outro
aspecto em que se percebe a convivência amorosa do autor com a escritora diz
respeito à ampla lista de autores pesquisados que compõem as referências. Aí,
num balé harmônico se misturam nomes ligados à Crítica Literária, à
Historiografia Literária, à Nova História, à História de Pernambuco e do
Brasil, às questões judaicas, à Sociologia, enfim... É preciso muita afinidade
com o tema examinado para, com paciência e esmero, tecer essa rede de saberes.
Como
se sabe, há muitas biografias relativas a Clarice. Todas elas são referidas e
seus autores são nomeados no corpo do presente trabalho. Vou citar aqui as mais
conhecidas: Eu sou uma pergunta, (Teresa Montero), Clarice uma vida
que se conta e Fotobiografia (Nádia Battella Gotlib), Clarice, (Benjamin
Moser). Porém, todas elas, de uma maneira geral, veem a Clarice menina e o
Recife deste tempo, refratados pela própria prosa da ficcionista, em seus “contos
memorialísticos”, como os denominou Nádia Gotlib. E que contos seriam esses? “Felicidade
clandestina”, “Restos de Carnaval”, “Banhos de mar”. São narrativas, na
realidade, que transitam entre Recife e Olinda, e resgatam experiências
fundadoras na vida da Clarice criança. Trata-se de experiências que marcadas no
calendário do antigamente repercutem como um ritornello na memória
afetiva da escritora e também na de seus leitores, que volta e meio, reativam
essas suas passagens de vida através da releitura.
A
nova biografia de Teresa Montero, À procura da própria coisa, Rocco,
2021, segue uma trajetória diversa das anteriores, até porque a autora se
deslocou a Recife e “viveu”, na medida do possível, os cenários do outrora da
cidade e da escritora. Enquanto Teresa conduz sua experiência pelos olhos dos
Estudos Literários de cunho biográfico, Henrique Inojosa o faz guiado pela
visão da História. São perspectivas que se intercambiam e se somam, deixando os
leitores aficionados, ou simplesmente curiosos de Clarice, com mais dados sobre
essa vida, que deu origem a tantas outras, através de seus personagens.
No
caso de Inojosa, de forma mais contundente, colhe-se da leitura de seu livro um
retrato da infância, da vida familiar, da cultura judaica no Nordeste, da
paisagem urbanística e social do Recife dos anos 20 a 30 do século XX e daí
advém uma pergunta incômoda, mas necessária: em que medida, o Brasil vem se
distanciando de uma realidade social precária, da qual a vida de Clarice no
Recife nos adverte? Ou melhor: ele vem se distanciando?
Clarice Lispector, no coração do Recife parte da história de uma criança, porém, certamente nos auxilia a meditar sobre essa questão.
* para comprar Clarice Lispector: no Coração do Recife entra em contato com a gente: miradajanelacultural@gmail.com
Henrique Inojosa - Mestre em História pela UNICAP, autor da obra "Clarice Lispector: no Coração do Recife" (Selo Mirada, 2021).
Fernanda Coutinho -