por Marcela Güther__
“É preciso aprender a ler
mulheres, sem reduzi-las à autobiografia”: uma entrevista com Tatiana
Lazzarotto
Quantas lembranças atravessam um corpo
enlutado? O que fazer com o desejo de nossos mortos? Em sua estreia, a escritora
Tatiana Lazzarotto nos apresenta, em prosa
poética, o desenrolar de uma notícia de morte. É também uma história sobre um
pai, uma filha e uma árvore. Um deles está morto. Os outros dois terão de
sobreviver.
O romance “Quando as árvores morrem” (Editora Claraboia, 164 p.)
acompanha o desenrolar de uma notícia de morte e as memórias que atravessam o
corpo de quem fica. A obra foi uma das vencedoras do edital ProAC de obras de
ficção, promovido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de
São Paulo.
Na história, narrada em primeira pessoa,
a protagonista perde o pai de forma repentina e retorna a Província – cidade
fictícia –, para atender aos desejos deixados por ele: recuperar a casa da
família e garantir que a velha árvore do quintal, já condenada, não seja
derrubada.
Ao mesclar a experiência do luto com as
memórias de infância, a narradora relembra a trajetória do pai, que deixou a
profissão de comerciante quando ela e os irmãos eram crianças, para se
transformar em Papai Noel profissional. O romance busca esmiuçar um personagem
pouco visível na literatura, além de lançar um olhar sobre os milhares de
homens que encarnam o personagem mítico no final do ano: de que maneira esses
profissionais se relacionam na intimidade, com suas famílias?
O livro também é uma experiência
ficcional a partir de uma vivência de luto da escritora. Assim como a
personagem, Tatiana perdeu o pai, falecido em 2018, que durante sua trajetória quebrou recordes nacionais como
Papai Noel. Além de honrar a
memória do seu pai, grande incentivador da sua escrita, o livro tem como missão
poder abraçar quem fica. “Especialmente num luto coletivo como este que
vivemos, acredito que este abraço, que eu busco com o livro, não se estende
apenas aos que perderam alguém. Mas a todos nós”, aponta Tatiana. “Também é um
livro sobre pessoas que não cabem, pessoas que transbordam. As duas
experiências se confundem. Perder alguém também é não caber.”
Confira
a entrevista completa com a escritora Tatiana Lazzarotto:
1 - Se você pudesse resumir os temas centrais do livro “Quando as
árvores morrem”, quais seriam? Por que escolher esses temas?
Luto, pertencimento e memória. Tenho um grande amigo que perdeu
o pai, assim como eu, anos antes de mim. Ambos sofremos essa perda à distância
e enfrentamos, cada um, uma longa viagem para nos despedir. Tivemos uma
conversa honesta sobre os momentos cruciais do luto – ouvir a notícia pelo
telefone, comprar a passagem, chegar ao velório. Falamos também sobre os dias
seguintes aos dias seguintes. Sobre como sonhamos com os nossos pais e como são
essas sensações. Como as lembranças se perdem e se reconstituem em novas
perspectivas. Percebi que nunca tinha ouvido algo assim antes de perder uma
pessoa próxima. E entendi que, depois da perda, nunca tive vontade de contar
isso a alguém que não teve a vivência de órfão, especialmente os desgarrados,
que não encontrarão outra vez uma casa depois do luto. Meu livro é esta
conversa. Também é um livro sobre pessoas que não cabem, pessoas que
transbordam. As duas experiências se confundem. Perder alguém também é não
caber.
2 - Qual a principal mensagem que você quis passar com a obra?
Não sei se posso falar em mensagem. Eu penso que o que eu mais
queria com esse livro, além de honrar a memória do meu pai (grande incentivador
da minha escrita), é poder abraçar quem fica. Especialmente num luto coletivo
como este que vivemos, acredito que este abraço não se estende apenas aos que
perderam alguém. Todos nós ficamos.
3 - O que motivou a escrita do livro? Como foi o processo de
escrita?
Embora a ideia de escrever um romance sempre estivesse presente
em algum lugar dos meus desejos, a premiação no edital ProAC de obras de ficção
(promovido pela Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São
Paulo), em 2020, foi um enorme incentivo. Sempre pensei em apresentar uma ideia
tão boa que pudesse ser validada e fomentada com recursos destinados à promoção
da cultura. Queria escrever uma história que esmiuçasse um personagem pouco
visível na literatura, lançando um olhar sobre os milhares de homens que
encarnam esse personagem mítico de Papai Noel: de que maneira esses
profissionais se relacionam na intimidade, com suas famílias?
Dentro do ProAC, que é um edital de longa duração, pude me
dedicar à pesquisa e depois destinar um tempo à escrita. Nesta última etapa, no
início, contei com o acompanhamento da escritora Laura Cohen, que me ajudou a
entender para onde meu texto ia. Também recorri a amigas e leitoras betas, que
foram bastante generosas em ler as primeiras versões. Embora o livro tenha sido
escrito em um ano, praticamente, creio que é uma obra que vem sendo produzida
há muito tempo. O desejo de criar uma personagem inspirada no meu próprio pai
existe desde antes de eu perdê-lo. Trata-se de uma obra de ficção, com muitas
memórias: emprestadas, ressignificadas e, sobretudo, ficcionalizadas.
4 - A história do livro é baseada na realidade, mas você sempre a sustenta como ficção. Poderia
comentar um pouco sobre suas escolhas literárias?
A história do romance recupera algumas de minhas próprias
vivências pessoais. Assim como a personagem que narra este desenrolar de uma
notícia de morte, perdi meu pai (em 2018), também de forma repentina. Enfrentei
o luto de um pai que era um artista e que ganhava a vida como Papai Noel. Meu
pai conquistou recordes em seu trabalho, foi alguém que, em certa medida, atraiu
a atenção da mídia e foi uma figura marcante e irreverente. Durante sua
trajetória como Papai Noel, respondeu mais de um milhão e meio de cartinhas
enviadas até nossa casa, por meio de um CEP especial dos Correios, bateu o
recorde de mais eventos realizados em um único dia, palestrou em cinco
conferências TEDx no Brasil. Alguns detalhes do livro foram baseados em fatos
reais - embora, reforço, seja uma obra de ficção. As memórias que emprestei
para a minha história foram transformadas em matéria literária. Essa
ficcionalização a partir do real, que alguns chamam de autoficção, permeou toda
a construção do livro. Tem uma frase do Barthes (citada pela Rosa Montero em
seu livro A louca da casa) em que ele
diz que toda autobiografia é ficcional e toda ficção, autobiográfica. Acredito
que todos nós, que escrevemos essa espécie de autoficção, nos situamos com os
dois pés nessa fronteira. O leitor é parte desse jogo, é enredado nesse
mistério - do que aconteceu e do que não aconteceu e, se aconteceu, foi da forma
que está sendo contado. De qualquer forma, concordo com o Waly Salomão quando
ele diz que a memória é uma ilha de edição. Quando nos propomos a recuperar um
fato do nosso passado, ele já é outra coisa. Não dá para desconsiderar também
todo o trabalho de criação literária. O escritor é um artesão, muitas vezes é
impossível separar a realidade crua da ficção, assim como é difícil enxergar o
bloco de mármore que existia antes da escultura.
5 - A escrita de mulheres, muitas vezes, e erroneamente, é resumida
à autobiografia, à escrita confessional. Como você enxerga esta questão, agora
que publicou uma obra que ficcionaliza memórias suas?
Quando uma mulher escreve literatura no Brasil, especialmente as
estreantes, mas não só, há uma ideia de que sua obra é algo que deriva sempre
do real. Há uma curiosidade - maior do que o normal - de entender “quem são” as
pessoas retratadas ou quais foram os fatos reais que deram origem a sua obra.
Desde que ganhei o edital e passei a escrever meu romance, partilho as minhas experiências
de escrita nas redes sociais e na minha newsletter mensal (intitulada Eu sou toda sonho, enviada de forma gratuita aos assinantes). Há sempre muitos retornos de mulheres que já
escrevem sobre essa abordagem de leitores, questionando se aquilo que foi
escrito realmente aconteceu, ou se a escritora pensa exatamente como o eu
lírico de seus poemas, por exemplo. Acredito que isso também afasta muitas
mulheres que ainda não se assumem publicamente como escritoras a expor suas
obras - pelo medo dessa leitura taxativa.
Esse tom pelo qual muitas escritoras são lidas reduz a literatura
produzida por mulheres a uma produção puramente confessional - e não há nada de errado na literatura
confessional, apenas é preciso entender que as mulheres são capazes sim de
criar personagens e enredos ficcionais, que não estamos falando sempre sobre
nós mesmas. Essa licença poética, concedida de forma mais fluida e orgânica aos
homens escritores, precisa fazer parte do repertório de leitores de mulheres. É
preciso não somente ler mais mulheres, mas também aprender a ler mulheres, sem
reduzi-las à autobiografia. Mesmo que meu livro tenha inspirações em minhas
próprias vivências, meu romance Quando as
árvores morrem é uma obra de ficção - não há nenhum compromisso de registro
biográfico ou histórico. O pai da história é um personagem ficcional - embora
seja inspirado e criado à memória de meu próprio pai - por isso, é um homem com
suas próprias nuances, memórias e escolhas.
6 - E quais são as suas principais influências literárias? Que
livros influenciaram diretamente “Quando as árvores morrem”?
Minha primeira grande
influência foi o escritor Gabriel García Márquez e seu realismo fantástico,
ainda durante a graduação em Letras. Depois, busquei me apoiar mais na escrita
de mulheres, principalmente as contemporâneas. Conceição Evaristo e Rosa
Montero são duas autoras marcantes para mim. Mais recentemente, creio que fui
bastante impactada pela Elena Ferrante, especialmente sua tetralogia
napolitana.
Vou citar algumas referências que busquei durante a escrita do
meu livro. Como se trata de uma
prosa poética, bebi muito na escritora mineira Ana Martins Marques (O livro das semelhanças e A vida submarina) e no português José
Luís Peixoto (Morreste-me e A criança em ruínas). Ainda dentro da
temática do luto, busquei obras que entrelaçam o tema da perda com o do
pertencimento, dentre as quais, cito: Noite
em Caracas (Karina Sainz Borgo), Fun
Home (Alison Bechdel) e O lugar (Annie
Ernaux). Sobre os Ossos dos Mortos,
da Olga Tokarczuk, foi uma referência para a construção da narradora-personagem,
muito embora seja muito difícil construir algo minimamente próximo à genial
Senhora Dusheiko. Também me inspirei em obras que costuram lembranças, como Becos da memória (Conceição Evaristo), Quase memória (Carlos Heitor Cony) e A resistência (Julian Fúks).
7 - Em “Quando as árvores morrem”, você dedicou-se à pesquisa sobre
o desenvolvimento e a inteligência das árvores, a fim de entender a dinâmica
das florestas e como isso se mescla com o cotidiano de uma família. Poderia
contar um pouco sobre esse processo?
As árvores sempre me fascinaram, desde muito criança. Confesso
que herdei esse fascínio do meu próprio pai, que passou a se interessar quando
nos mudamos para uma casa que tinha uma grande árvore no quintal. Dividimos,
durante a vida dele, alguns insights e curiosidades sobre a dinâmica das
florestas. Lembro-me de um documentário que assisti que comentava brevemente
que a morte das árvores acontecia geralmente por obra do fogo, do vento ou pela
ação humana, já os homens e mulheres eram mortos por inúmeras variáveis. Quando
pensei em escrever um livro sobre a morte, na hora me veio à cabeça essa frase
e quis relacionar mais dessas curiosidades no livro. Por isso, escolhi uma
árvore como uma das personagens e decidi traçar paralelos no livro: árvores e
humanos têm dinâmicas parecidas? Árvores têm uma inteligência própria, como a
que temos? Elas funcionam em rede, em comunidade, como uma família? A partir
daí, fui coletando informações e costurei-as ao enredo do luto, transformando
em reflexões da própria personagem.
8 - Você escreve desde quando? Como começou a escrever?
Sei que é comum ouvir de escritores que escrevem “desde sempre”,
mas isso aconteceu mesmo comigo. Comecei a criar histórias desde que aprendi a
escrever. Sempre li muito. Embora nunca tenhamos tido uma grande biblioteca de
livros em casa, cresci rodeada de estímulos: gibis, revistas, jornais. Aos 9
anos, descobri a biblioteca municipal e começou a minha vida de leitora – e
pretensa escritora – de livros. Na adolescência, desaguei a vontade de escrever
trocando exaustivas cartas com as amigas, depois, já na faculdade, comecei a
escrever crônicas em blogs. Mas acredito que a vontade de contar histórias veio
da infância, dentro de casa: meu pai, que na época era viajante, e minha mãe,
uma pernambucana radicada em Santa Catarina, me rechearam de causos, o que me
deu consciência desde cedo de que havia outros mundos. Essas são minhas
memórias mais antigas e ainda hoje elas atravessam qualquer coisa que eu
escreva.
9 - Você tem algum ritual de preparação para a escrita? Tem alguma
meta diária de escrita?
Gosto de aproveitar a luz natural, então escrevo melhor durante
o dia. Sinto-me mais atenta para revisar ou editar meus textos durante à noite.
Então, procuro deixar o trabalho criativo para o período diurno e o acabamento
para o noturno. Nem sempre escrevo todos os dias (a menos que eu esteja com um
projeto em andamento - na reta final do livro, escrevi muitas horas por dia).
De qualquer forma, gosto de estar sempre em estado de escrita, uma expressão
que aprendi com a escritora Andrea Del Fuego. Mesmo que eu não esteja
efetivamente escrevendo, quase tudo o que eu faço, vejo, leio ou assisto,
funciona como uma referência ou uma etapa de construção para meus textos. Gosto
de construir meus textos pensando que estou tecendo uma colcha, costurando as diferentes
ideias que absorvi depois das minhas observações e estudos. Enxergo o texto
como um tecido (o que vem da própria etimologia da palavra, ligada a tecer,
entrelaçar), com seus pontos, linhas, tramas e fios da meada. Isso ajuda a
tornar a atividade mais poética para mim, porque me vejo mais como artesã da
palavra do que como alguém que está preenchendo páginas de forma mecânica.
Tenho esse olhar até mesmo quando estou escrevendo rápido, desaguando ideias em
ritmo acelerado.
10 - Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação?
Brinco que minha procrastinação é ativa. Se eu tenho dificuldade
em concluir um capítulo, geralmente é o dia que faço faxina, troco os vasos das
plantas ou dou banho nos cachorros. Limpar a casa é um ciclo sem fim, sempre
tem algo para fazer, então, é muito perigoso ir por esse caminho. Busco fazer
um planejamento semanal para evitar que os projetos se percam. Durante a
escrita do romance, escrevi textos diferentes em termos de linguagem e
temática, o que me ajudou a destravar a escrita do livro. Eu também deixava
“marinar” um capítulo que não conseguia concluir para escrever outros mais
adiante. Essa escrita em não-linearidade me ajudou muito (o final do livro foi
escrito durante a produção do segundo capítulo, por exemplo). Acredito que
fazer terapia ajuda a identificar de onde vêm esses ciclos de procrastinação.
Não tem melhor saída para isso do que o autoconhecimento, embora a resposta
possa levar uma vida inteira para ser encontrada.
11 - Quais são os seus projetos futuros na escrita? Planeja outro
livro?
Meu projeto atual é terminar meu mestrado em Estudos Culturais,
na Universidade de São Paulo (USP). Minha dissertação é sobre coletivos de
mulheres escritoras e a importância desses espaços exclusivos para a produção literária
de mulheres contemporâneas. Um segundo livro é um projeto, sim, embora eu só
saiba dele o título. Espero que eu possa trabalhar nessa produção em breve.
Tatiana Lazzarotto é escritora, jornalista e mestranda em Estudos Culturais na Universidade de São Paulo.
Marcela Güther - Sócia e diretora de conteúdo e relações públicas na com.tato. Está à frente do serviço de assessoria literária, auxiliando autores e editoras a divulgarem seus trabalhos na mídia. Já foi redatora de portais de literatura e revisora de livros e publicações literárias. Organiza o clube Leia Mulheres de Joinville (SC) desde 2017.