por
Adriano Espíndola Santos__
Samara
morava do outro lado da rua. Pelo que sei, havia saído do interior com a
família para conseguir alguma oportunidade na terra de concreto. A sua feição
não negava a pureza dos sentidos. Ela não olhava diretamente, sempre de cabeça inclinada;
via como se apreciasse pelas frestas da janela da vida. Apesar da timidez,
parecia ser extrovertida no íntimo de seu lar. Quando eu voltava da escola,
almoçava, tomava banho e ia para a porta de casa; na esperança de encontrar o
Tonho ou o Régis para brincar, acabava por ouvir os sons de risos soltos vindos
da casa da menina bonita. E aquela felicidade contrastava com o lugar, que nos
últimos tempos era objeto de disputa de facções. Acho que Samara não sabia
desse detalhe, nem seus pais, pois à tardinha andavam tranquilos em direção à
mercearia ou à pracinha. Nesse tempo, passei a frequentar mais a pracinha, que,
para mim, grande, não havia tanto interesse de ficar em balanço ou
escorregador. Levava a minha bola e trocava alguns passes com o Tonho, que, de
tão fresco, exibido, fazia questão de chutar a redonda para o lado da menina
bonita. Nós nos conhecemos assim, propriamente, quando fui buscar a bola que
atingiu as suas costas. Pedi desculpas e, em resposta, ouvi: “Não foi nada.
Tudo bem”. Aproveitei o ensejo para me apresentar. Ela continuou de cabeça
baixa, declarando o seu nome e sua vontade de permanecer assim, intocada. Na
hora em que me afastei, dei boa-noite, e, felizmente – o que abriu um cosmos em
mim –, ouvi: “Boa noite!”. Para você que está lendo, acostumada a esse tipo de
tratamento, deve não parecer nada, mas, de fato, foi uma grande conquista para
um rapaz como eu, que quedou dias se contentando com o brilho de sua aura, sem
sequer escutar a sutileza de sua voz, também marcante. Como Tonho tinha umas
brincadeiras grosseiras e estabanadas, preferi não ir mais com ele à pracinha.
Escolhia justamente o horário do final da tarde para me encontrar com a alma
divina. Ela, aos poucos, foi se abrindo para mim. A grande virada se deu quando
seu irmãozinho, que devia ter uns cinco anos, veio em minha direção e pediu
para jogar bola comigo. Ela teria de o acompanhar. Postou-se um tanto longe de
mim e do irmão. Mas, vendo que o mano estava se divertindo, me chamando de “tio”,
chegou-se mais, em passos curtos, medidos, para não ficar muito exposta aos
meus supostos gracejos. Creio que aí ela já sabia da minha intenção. Depois de
dias e dias olhando-a, desejando-a, não seria possível que fosse tão
insensível, a ponto de apagar todos os indícios. João Neto, o irmão de Samara,
já queria ser um assíduo frequentador da minha residência, me chamando para
irmos à praça todos os dias. Claro, Samara o acompanhava, levemente presa ao
seu recato. Às vezes ria das minhas arrumações com o pequeno, pondo a mão à
frente da boca para não mostrar os dentes. O encanto se dava, e já estava certo
disso, pela carência e pela forma de pouco querer se entregar a alguma
aventura. Com seis meses, consegui frequentar a sua casa, muito miúda, onde
cabiam ela, a mãe, o pai, uma irmã e o dito irmão. Não havia quarto; todos
dormiam num vão. Eu sabia que o seu pai trabalhava com bicos e a mãe era
lavadeira. Cheguei até a arranjar clientes para os dois. Notava que eles me
queriam bem; com a insuficiência de recursos, ainda assim repartiam o pão. Vi
seu Geraldo, o pai, reclamar da carestia e, por vezes, levar as mãos à cabeça,
com aperreio vivo, incontido. Maria, a mãe, era mais abafada, e chorava nos
cantos, disfarçando ser um resfriado. Quando eu pensava que estava tudo bem e
que mais cedo ou mais tarde poderia pedir a mão de Samara aos seus pais, fui
surpreendido com o som de um motor de carro velho. Eram seis da manhã, naquele
sábado. A única coisa que consegui daquele dia horrível foi uma carta largada
por Samara, mal escrita, onde dizia que viria me encontrar, ou que eu a
procurasse para os lados de Serra Grande – não me disse o local exato; talvez
não soubesse. A passarinha voou, sem se despedir; e deixou meses e meses de
triste solidão. Teríamos um futuro bonito pela frente. Eu tinha dezesseis e
ela, no mínimo, quatorze. Hoje me pergunto como pude deixá-la partir, assim,
desgarrada, sem amparo e sem cor.