O funeral da baleia, de Lilian Sais

por Adriane Garcia__ 

 



A cidade é Assum Preto, há uma baleia encalhada em uma de suas praias e um telefonema que acontece exatamente à meia-noite e trinta e sete minutos. Há uma filha que narra em primeira pessoa e um pai que é narrado em terceira. Há o silêncio de uma mulher e a decisão de quebrá-lo, mas sem o costume de fazê-lo; um silêncio quebrado aos poucos, uma voz que ousa dizer, mas ainda é incapaz de pronunciar o nome exato das coisas, uma voz que sugere. É sobre essa cidade, essa filha, esse pai, e as palavras que não ousam ser ditas que Lilian Sais nos conta em O funeral da baleia.

 

Desde o nome da cidade, Assum Preto, a autora já nos dá o tom da tragédia e denuncia os efeitos nocivos da tradição. A tradição, tão usada como argumento para a proteção da comunidade (e da família), serve para mascarar, mentir, perpetuar o autoritarismo e a violência, especialmente contra os mais vulneráveis. O pássaro, que tradicionalmente tem os olhos furados para cantar melhor, assume uma simbologia importante dentro da narrativa: “Se quer dom, talento, vida, responde: de que está disposto a abrir mão?” É interessante notar que três animais prevalecem na história contada por Lilian Sais, o assum preto, a baleia e o boi. O pássaro é leve e voa, a baleia encalha; o pássaro, mesmo mutilado, canta; a baleia provoca o caos com seu peso. No pássaro e na baleia dois opostos, mobilidade e encarceramento. O boi observa e rumina. O ponto central das simbologias utilizadas por Lilian Sais é o corpo.

 

Ao decidir romper o silêncio – e portanto a tradição – Joana, a filha de Artur Pereira, nos coloca diante da proposição de ouvi-la e compreender seu enigma: a baleia encalhada cujo bater da cauda provoca abalos sísmicos, derrubando ônibus com crianças e capotando caminhões que transportam bois é causa ou é efeito? E se for efeito, a baleia encalhada é um efeito de qual causa? Ao utilizar uma linguagem que mescla realismo e realismo fantástico, com pitadas muito bem distribuídas de recursos poéticos, a autora mostra e esconde, amplificando o enigma no qual a própria personagem Joana se vê. Ela é grande. A baleia é grande. A barriga da mãe é grande. O corpo grande é uma presença absoluta no livro assim como a palavra peso; porém, grande, a despeito de todos os vocábulos que pode ganhar uma baleia, é o mais grave adjetivo que a voz que decide romper o silêncio consegue dizer.

 

Se a narradora em primeira pessoa nos fornece as pistas de seu encarceramento no próprio corpo, a narração em terceira pessoa que nos coloca lado a lado com o pai, Artur Pereira, nos mostra um homem não menos implicado nos acontecimentos de Assum Preto. Esse homem que usa – em revezamento – apenas dois shorts em casa, sem cueca, cuja genitália ficou exposta à filha desde sempre, cuja virilidade lhe é um valor importantíssimo (apesar de sua patente fragilidade e dependência de mulheres) e que procura alienar-se diante da própria falta é peça chave para o pano de fundo que rege O funeral da baleia: o trauma. É nos dois buracos próximos à costura do short de Artur Pereira, entre suas pernas abertas com seu testículo exposto, que a filha fantasiava os olhos do assum preto. Justo o pássaro que sofre a castração de não poder ver. Em O funeral da baleia toda falta – castração – vai se traduzir em excesso.

 

Assim, é propositalmente excessivo o aparecimento da comida em O funeral da baleia. A comida aparece para tampar o vazio da falta das palavras, do silenciamento nas relações parentais. O pai não tem palavras para oferecer à filha; a mãe, sabemos, era silenciosa, no entanto, sempre há comida. A comida é um substituto – por deslocamento – do afeto. A comida é o reencontro com o primeiro encontro: a mãe. A primeira ideia de saciedade se dá com o leite. O amor primeiro é oral. Apesar da filha desvendar parte do trauma ao confessar o momento exato em que não parará mais de crescer (como se uma baleia fosse somente comprida e não larga – no livro jamais se usa a palavra gorda), outras pistas sugerem que este movimento em que o corpo reage às faltas comendo e/ou oferecendo comida aconteciam desde a infância. Ainda assim, não se pode dizer que estamos diante dos corpos fisicamente sugeridos – e isso é muito interessante no livro – que não temos certeza que o corpo que poderia ser visto é o corpo narrado, pois o corpo humano não é somente matéria no mundo, o corpo é o mundo de representação que dele fazemos, nossos sintomas podem ser fundados na imagem e não na estrutura biológica. Um corpo que tivesse a estrutura de um pássaro poderia jurar que possui a estrutura de uma baleia e mesmo vê-la, quando ninguém mais o pudesse fazer. E esse é um fenômeno típico de alguns transtornos alimentares.

 

A baleia, silêncio que tudo alonga, signo para a mãe, para a filha, para a falta – e até mesmo para o pai estacionado na negação de sua fragilidade – assombra a narrativa do início ao fim. Silêncio que Artur Pereira impôs sem perceber que instituía seu próprio algoz. Um homem que silencia mulheres não saberá o que elas pensam, não sabe se as respostas que elas lhe dão são verdadeiras ou se são fruto do medo. As confissões obtidas sob tortura – física ou psicológica – não podem ter validade. Espadachim patético, pretenso amolador de facas, Artur Pereira não tem mais como saber, agora que o silêncio é realmente irremediável, se a satisfação da mulher não era fingida, pois tem fortes indícios para suspeitar que ela não era assim tão honesta quanto ele pretendia e se julgava merecer.

 

Um livro sensível, inteligente, emocionante. O que as leitoras e leitores acompanham em O funeral da baleia é um processo de luto tão extenso que talvez se trate já de um processo patológico de melancolia. Talvez a grande pergunta seja relativa não ao funeral mais evidente, mas: o que foi que morreu primeiro? A maior parte da narração vai se dar em dois dias após o fatídico telefonema. Depois, um salto de décadas. Há coisas que de tão profundas nunca será possível se livrar. Mas algumas vezes, é possível cantar mesmo com os olhos furados. No corpo erógeno da criança toda marca de amor e de desamor ficam tatuadas. Torcemos para que a baleia desencalhe. Torcemos para que as ondas do mar se libertem e possam varrer a praia. Torcemos para que o homem, diante do boi que rumina, tenha coragem de se ouvir. Torcemos pelo fim da tradição que mutila meninas, pássaros e, acredite, até mesmo os homens.

 

“Pega a tábua e deita a peça de carne sobre ela. Escolhe a faca que parece estar mais afiada e começa a cortar bifes. Com alguma dificuldade. Ocupado com isso, avaliando a espessura que cada um deve ter – Nem muito grosso nem muito fino, cem gramas cada –, pensa que talvez ele não saiba mais afiar bem uma faca na outra, que talvez nunca tenha sabido, e que a mulher fingiu, esses anos todos, que ele fazia isso muito bem. 

            Por pouco não faz um corte na mão esquerda. Quando percebe que a lâmina se aproxima da carne, a sua, congela o movimento por um segundo. Recompor-se. De onde ele tirou essa ideia? De que a mulher fingiria estar satisfeita com o corte de uma faca para agradá-lo? A mulher não era dessas. Dizia o que tinha que dizer, na lata. Era sincera, sim. Uma mulher honesta. No entanto, Artur Pereira acha que é mais forte que a mulher e está tendo dificuldade.

            Ele se confunde. Olha para trás, para a cadeira da mulher, inquisidor. A faca na mão direita golpeia o vazio. Seus lábios desenham ameaças que nunca fez antes. Sente-se traído, mas não tem mais recursos além da conjectura. Nunca soube afiar facas. De repente aquele instante cortando a carne pesava quarenta anos, e só agora ele entendia o que significavam quarenta anos.” (p. 51)

 

O funeral da baleia

Lilian Sais

Romance

2021 

Ed. Patuá


Lilian Sais é escritora brasileira, preparadora de texto e produtora de podcasts. Doutora em Letras Clássicas, publicou, de poesia, a plaquete Passo imóvel (Ed. Cozinha Experimental) e os livros Acúmulo (Ed. Patuá) e Uma baleia nunca dorme profundamente (Ed. Hecatombe). Tem poemas, contos e textos críticos publicados em diversas revistas digitais e impressas. Alguns dos seus poemas foram traduzidos para o espanhol, o inglês e o grego moderno. Em 2021, venceu o Prêmio CEPE Nacional de Literatura, na categoria poesia, com o livro inédito Motivos para cavar a terra. Em 2020, foi contemplada pelo ProAC para a publicação do romance O funeral da baleia.



Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis).