Quase nada de azul sobre os olhos, de Henriette Effenberger

por Adriane Garcia___

 


No primeiro capítulo de Quase nada de azul sobre os olhos já sabemos que estamos diante da fuga, ou da liberdade. Como ainda não sabemos o nome da personagem de que se trata, podemos confundi-la com outras, também com motivos suficientes para embarcar em um avião rumo a outro país, sem deixar endereço. Na sequência, a autora, Henriette Effenberger, nos apresenta uma galeria de personagens intercaladas com muita habilidade. Nessa galeria, homens ausentes: pais, avôs, maridos, amantes; e mulheres presentes: mães, esposas, filhas, amantes, secretárias, empregadas domésticas. As histórias vão se cruzando, formando um mosaico cujos dramas pessoais se forjam nas relações românticas e parentais. Há dois mundos explicitados, o da vida privada e o da vida pública. Em pouco tempo percebemos o fio da meada: mulheres cuidam. 

 

Historicamente foi dado à mulher um lugar de cuidadora. E este lugar foi tão repetido à exaustão que se naturalizou a ponto de parecer que a mulher é biologicamente feita para cuidar e o homem, ao contrário, nasceu sem esse artefato. À mulher o mundo privado da casa e dos afetos, ao homem o mundo público das profissões e da política. À mulher a harmonia da casa, ao homem os assuntos da guerra. A naturalização dos papéis sexistas leva a um ordenamento moral e social que envolve punições à mulher que trair seu “instinto” maternal, cuidador. Mais que isso, a naturalização dos papéis sexistas faz com que a própria mulher internalize a punição. É ela própria que vigiará sua conduta e é ela mesma que sentirá seu desejo “diferente” como desejo desviante. Não se discute o que é natural e desde crianças aprendemos o modo correto de ser homem e de ser mulher. 

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Com uma linguagem direta, em parágrafos curtos que facilitam bastante a leitura, narrado em terceira pessoa, Quase nada de azul sobre os olhos nos traz uma narrativa dinâmica, que conta com sagacidade e um humor finamente dosado. Nele, gente humana, demasiadamente humana, luta para romper seus grilhões, às vezes colocando grilhões nos outros. Isso fica claro, por exemplo, na relação de Eva com Cleonice, a empregada doméstica que não tem seus horários respeitados. Os homens aparecem não só como algozes, mas como pessoas frágeis, não raro, narcisistas, megalomaníacos, com um aparato emocional deficiente, já que não lhes é “permitido” lidar com certos afetos, assuntos de mulher. 

 

Na complexidade das histórias que Henriette Effenberger tece, as mulheres que estão prestes a romper um círculo de cuidadora precisam recusar a tradição e o conservadorismo para cuidarem de si mesmas. O livro nos traz, por trás de uma leitura em que até nos esquecemos de que estamos lendo – tão bem contada – uma questão ética e de gênero. Lena, uma de suas personagens, parou de cuidar de si própria para cuidar da mãe e do pai, pois é essa abnegação que se espera de uma filha. Não há possibilidade de conciliação porque o cuidado de si não é uma opção ensinada às mulheres. Elas devem cuidar de todos, o mundo deve ser cuidado por mulheres e que vivam com esse peso. 

 

Capítulo a capítulo, as histórias se adensam e queremos saber o destino de cada uma das personagens de Quase nada de azul sobre os olhos. Uma médica aceitou um trabalho de meio período em um hospital próximo, na triagem, para conseguir cuidar dos filhos, da casa e dar apoio ao marido, cuja carreira chegará ao topo. Uma funcionária pública larga o emprego para ficar com o pai com Alzheimer, enquanto se ressente por não ter feito o para-casa de casar e ter filhos. Uma jovem quer ser perfumista, mas antes disso passa pela violência sexual. Uma gerente de banco enfrenta a jornada dupla de quem ousou ir à esfera pública, mas sabe que quem cuida é a mulher - com o agravante de que deve estar sempre bonita e disponível para o amante. Uma secretária praticamente assume o lugar de mãe do chefe. Isaura morreu, o que sabemos é que cozinhava para seu marido tudo o que ele demandava e era o seu esteio, agora substituída pela filha. Não à toa, a mulher do primeiro capítulo, rumo ao estrangeiro, carrega um livro durante a viagem, Quarenta dias, de Maria Valéria Rezende, livro no qual temos uma protagonista sofrendo a angústia de um processo de libertação. Essa angústia deriva do fato de o desejo ir contra as normas da moralidade, afinal, mães – ainda mais se forem velhas – devem sempre ajudar suas filhas, abdicar de seus desejos pessoais pela maternidade e, quando as filhas têm filhos, cuidar dos netos.

 

Ao terminar a leitura, algum alívio, o sexismo vem sendo contestado, na prática. Há uma questão sobre a responsabilidade. Onde estão os homens nas relações com as crianças que fazem? Na falta da responsabilidade compartilhada, o enaltecimento do altruísmo feminino. Mas o altruísmo não deveria ser atribuído como uma característica feminina, e sim buscado como característica humana. E o altruísmo, como quase tudo na vida, deve ter limites. A sobrecarga que existe sobre as mulheres enquanto devem patrocinar os sonhos dos homens leva a um adoecimento da sociedade em geral. Sim, as mulheres têm sido a mão-de-obra mais barata e fundamental do sistema e por isso vigiam tanto os seus corpos. O conceito de maternidade deveria ser totalmente separado do conceito de maternagem. Maternidade é um processo biológico. Maternagem é uma construção sócio-histórica que consiste na habilidade de cuidar de um filho ou filha e pode ser exercida por pessoas de qualquer sexo, gênero ou orientação sexual. Pode haver maternidade sem maternagem e vice-versa.

 

Quase nada de azul sobre os olhos é um livro prazeroso e sério. Simples, mas complexo. De uma autora que domina a técnica do que está fazendo, e emociona. No avião, torcemos pela mulher que simplesmente resolveu viver um pouco da própria vida que lhe resta. 


Eva desligou o telefone, contrariada. Toda vez que falava com a irmã se aborrecia. Era a eterna ladainha: o pai não estava bem, ele se sentia sozinho, ela estava sobrecarregada. No fundo, ela sabia que Lena a cobrava por não dividir o trabalho de cuidar do pai. Já tinha sugerido à irmã, inúmeras vezes, que o internasse em uma clínica para idosos, mas Lena também não aceitava isso. Gostava do papel de mártir, que desempenhava desde criança. Foi a conclusão a que Eva chegou. 

Lena era a filha boazinha e obediente. Eva sempre foi a rebelde, a que questionava as ordens dos pais, a que vivia a própria vida. Ela intuía que a irmã se tornara mais amarga a partir do momento em que conheceram Ernesto. E que ele, apesar de perceber o encantamento de Lena, escolheu Eva.

É bem verdade que Lena disse não se importar. Afirmava também que Ernesto, embora a atraísse, não era o homem que escolheria para o pai de seus filhos. Era imaturo e irresponsável. 

Mas, depois do noivado anunciado, Lena conseguiu uma transferência na repartição pública em que trabalhava e se mudou de cidade, só voltando para a casa dos pais quando a mãe doente necessitou de seus cuidados. 


Ao perceber que a enfermidade se arrastaria por longos e dolorosos meses, Lena requereu licença sem vencimentos do emprego e passou a se dedicar integralmente aos pais.

 

(p. 58/59)

 

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Quase nada de azul sobre os olhos

Henriette Effenberger

Romance

Ed. Telucazu Edições

2021

 

 

Henriette Effenberger - Nasceu e reside em Bragança Paulista-SP. É romancista, contista, memorialista, poeta e escreve também literatura infantil. Publicou, em 2002, em coautoria com Maria Dulce N. K. Louro, seu romance de estreia, A Ilha dos Anjos. Outros livros publicados: A aventuras do Superagora (infantil); SSAAM – 80 anos de acordes em harmonia; Aeroclube de Bragança Paulista – uma trajetória nas asas do tempo; Liga do Pico, Futebol e Pinga e Sindicato do Comércio de Bragança Paulista – 70 anos. Publicou também Linhas tortas, em 2008, composto por contos premiados em concursos literários nacionais e internacionais, com apresentação de Ignácio Loyola Brandão, e Vida de Sabiá – o que sabiam os sabiás além de assobiar, vencedor do Prêmio João de Barro de Literatura Infantil, editado em 2009, pela Fundação Cultural de Belo Horizonte. Em 2017, organizou a coletânea de contos: Horas partidas (Editora Penalux) e a coletânea de contos e crônicas do Movimento Mulherio das Letras (Editora Mariposa Cartonera).

 

 


Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você  (Editora Peirópolis).