por Caio Lucas Rocha__
Artcolagem por Caio Lucas Rocha |
Quando li Cidade Partida, do Zuenir Ventura, trabalhava como educador social na Biblioteca Comunitária - AQTSDV, - situada em umas das comunidades mais violentas de Fortaleza, o morro Tal, no bairro X. Fortaleza não é uma urbe de favelas localizadas em morro. Pela geografia plana, suas favelas também assim se configuram, com exceção de uma ou duas, de forma mais específica. Uma dessas é fruto de okupacao em uma APA (Área de Proteção Ambiental).
Lembro
que quando li o livro acima citado, fazia várias comparações entre a comunidade
do Vigário Geral, onde Zuenir frequentou para desenvolver seu livro, e a que eu
trabalhava.
Apesar
de ser uma cidade bastante violenta, em Fortaleza não é comum ver homens
armados com fuzis e pistolas andando "tranquilamente" na mesma rua
que brincam crianças e, com elas, compartilham abraços e afetos.
Tive a
feliz oportunidade de conhecer o morro do Vidigal, localizado na zona sul do
Rio de Janeiro e curtir um sambão com os moradores mais velhos. Já se passara
um mês que havia aportado no famoso erre jota e ainda não tinha conhecido
nenhuma de suas famosas comunidades. Até então meus percursos eram Copacabana e
Centro, mais precisamente na estação Uruguaiana e vez ou outra, na Lapa.
Mas
sentia a necessidade de conhecer a outra parte da cidade, o lado que Zuenir tão
bem, retratou.
Apesar
da fama, inclusive a musical, Copacabana e toda a Zona Sul exalam odor de mijo
e cigarro. A princesinha do mar parece mais um lixão a céu aberto de tão
suja, suas calçadas abrigam pessoas em situações de rua que dormem em suas
camas-papelão ao pleno sol do meio-dia.
Não me
contento com um Rio romântico, cantado pelas vozes suaves de Tom Jobim e
Vinícius de Moraes.
O que
me trouxe aqui foi a curiosidade. Precisava conhecer as famosas favelas
perigosas e pensar em estratégias para mobilizar recursos intelectuais e
operacionais e gerar impactos positivos nas realidades de jovens armados,
prontos para atirar e, portanto, matar.
O samba
estava lindo, Marquinho, o dono do bar, era de uma gentileza do tamanho do
morro. Foi ele que nos recebeu em seu típico bar raiz. Espaço pequeno, mas nem
por isso não deixava de ser grandioso. Sinuca bem no centro e poucas cadeiras.
Um janelão de frente para o mar que não conseguíamos ver devido a forte chuva que
lambia a cidade.
Muito
samba e muita chuva, mas não tem chuva que pare a cidade do samba. Afinal, no Rio
de Janeiro o samba é a energia que move tudo.
No
"Sem Neurose", nome de bar tipicamente carioca, conhecemos as
instalações, o mobiliário, as mesas, as pinturas de paisagens, as parabólicas
nas paredes externas e o cardápio pintado na parede.
Dona Arlete,
carioca da gema, permitiu o seu registro numa “fotografia-cartão-postal” do
nosso grupo de amigos. E no papo reto nos assegurou com toda convicção que ali estávamos
seguros. Nada e ninguém poderia nos fazer mal.
Sai para
fumar um cigarro no beco ao lado. Enquanto conversava com um amigo, nos
surpreendemos com uma verdadeira marcha marcial de jovens armados até os
dentes. Era tanto fuzil, pistolas e granadas nas mãos daqueles soldados, que
mesmo com tudo isso não pareciam hostis acompanhados de uma fiel escudeira cor caramelo
de quatro patas.
E foi
assim, no solavanco do susto de ver um fuzil ao lado do meu corpo que ouvi um
dos jovens armados me pedir o isqueiro. Sem articular muito bem as palavras, entreguei
sem saber para onde olhar. Uns seis homens fortemente armados, bem ali na minha
frente. Não era cena de filme, nem de livro. Era a vida real de um Rio de
Janeiro que se fazia violento: nem mais e nem menos, como as imagens das
calçadas de Copacabana que não aparecem nas novelas.
Mais o
Rio ali, na minha frente.
Não sei
se por respeito ou medo, há uma relação entre comunidade e o "movimento"
que é instigante e aparentemente pacífica e respeitosa.
A regra
do bar feita pelos mais velhos é: não se pode entrar armado. E assim acontece.
O samba
não parou e junto com a chuva inundava o Vidigal de beleza.
Aparentemente
nossa saída em uma noite verdadeiramente carioca estava superprotegida. Eu
nutria a certeza de que o pior que poderia acontecer era de uma hora para outra
ter meu corpo sambando sem saber sambar no meio de um tiroteio. E, como um bom
amante de crônicas, não poderia deixar de fazer dessa história musical e bélica, uma oportunidade de criar amizades e ouvir as histórias daquela gente do Vidigal para ter o que escrever depois.
O único
armado a entrar no bar era o famoso gerente da boca, o Robertinho. Aparentemente um cara gente boa que estava superaberto
para conversar sobre diversos assuntos. Sobre arte, raça, classe e violência
não faltou papo e, em momento algum, me senti hostilizado como me sinto todos
os dias nas ruas de Copacabana.
Em
certos momentos esqueci que possivelmente poderia estar conversando com um
assassino ou que lá fora tinha homens com armas exclusivas do exército nacional
e internacional. Para alguns pode não parecer simples, mas ali, armado na minha
frente, tinha um pai de família que tem uma fonte de renda ilícita, mas que
ainda não perdeu de todo a sua humanidade.
O “Sem Neurose” já estava fechando, mas
queríamos subir o morro para curtir um baile na laje do Arvrão. Para isso, havia
duas opções: caminhar quase três quilômetros subindo o morro ou chamar um
mototaxi.
Adivinha
o que o grupo escolheu? Lá fomos nós literalmente escalando. Devagar e sempre,
subimos com Robertinho e Fábio, duas crias do Vidigal. Em toda esquina homens
armados e com rádios comunicadores.
No
caminho, trocando ideia com Robertinho sobre o meu trabalho ali no Rio, ele
pergunta meio intrigado:
"Me
diz aí, muleque, que bagulho é esse que vocês estão pesquisando aqui no
Rio?"
-Tecnologia
social, Robertinho. Buscamos métodos para impactar de forma positiva
territórios que vivem em situações vulneráveis.
"Tipo:
ensinar os menó a ler pra não precisar pegar nas armas?!"
A
subida foi muito cansativa e quando chegamos o baile não estava como
esperávamos.
Não
tinha quase ninguém e como quem dá vida aos lugares e eventos são as pessoas,
ficamos meio desanimados, mas não o suficiente para ir embora às quase quatro
horas da manhã. Por ali ficamos decididos a ver o nascer do sol.
Nesse
embalo conhecemos outras pessoas. Nas conversas elas afirmavam que, apesar das
questões de racismo geográfico e violência policial, sentiam-se privilegiados
em morar no Vidigal porque tinham aquela vista maravilhosa para nos emprestar. Nós,
abobalhados contemplávamos a paisagem. No entanto, o dia nasceu nublado e não
trouxe muita esperança de que as coisas pudessem melhorar.
O tempo
passou. Seguimos por aqui, aproveitando o ar poluído que respiramos. Somos cotidianamente rasgados, mas tentamos costurar
as cidades partidas que atravessam nossos corpos, nossa alma.
Caio Lucas Rocha, CE. Artista visual, poeta da periferia de Fortaleza