por Taciana Oliveira __
Aos
Amigos
Amo
devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os
amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os
livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os
chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro
do fogo.
— Temos
um talento doloroso e obscuro.
Construímos
um lugar de silêncio.
De
paixão.
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que eu
aprenda tudo desde a morte,
mas não
me chamem por um nome nem pelo uso das coisas,
colher,
roupa, caneta,
roupa
intensa com a respiração dentro dela,
e a tua
mão sangra na minha,
brilha
inteira se um pouco da minha mão sangra e brilha,
no
toque entre os olhos,
na
boca,
na
rescrita de cada coisa já escrita nas entrelinhas das coisas,
fiat
cantus! e faça-se o canto esdrúxulo que regula a terra,
o canto
comum-de-dois,
o
inexaurível,
o
quanto se trabalha para que a noite apareça,
e à
noite se vê a luz que desaparece na mesa,
chama-me
pelo teu nome, troca-me,
toca-me
na boca
sem idioma,
já te
não chamaste nunca,
já
estás pronta,
já és
toda
do livro A Faca não Corta o Fogo
Minha
cabeça estremece
Minha
cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu
procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo,
penso.
Sonho
sobre os tremendos ossos dos pés.
É
sempre outra coisa, uma
só coisa
coberta de nomes.
E a
morte passa de boca em boca
com a
leve saliva,
com o
terror que há sempre
no
fundo informulado de uma vida.
Sei que
os campos imaginam as suas
próprias
rosas.
As
pessoas imaginam seus próprios campos
de
rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se
morresse;
outras,
como se agora somente
eu
pudesse acordar.
Por
vezes tudo se ilumina.
Por
vezes canta e sangra.
Eu digo
que ninguém se perdoa no tempo.
Que a
loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu
digo: roda ao longe o outono,
e o que
é o outono?
As
pálpebras batem contra o grande dia masculino
do
pensamento.
Deito
coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha
vida extasia-se como uma câmara de tochas.
— Era
uma casa — como direi? — absoluta.
Eu
jogo, eu juro.
Era uma
casinfância.
Sei
como era uma casa louca.
Eu
metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os
espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.
Apalpo
agora o girar das brutais,
líricas
rodas da vida.
Há no
esquecimento, ou na lembrança
total
das coisas,
uma
rosa como uma alta cabeça,
um
peixe como um movimento
rápido
e severo.
Uma
rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há
copos, garfos inebriados dentro de mim.
—
Porque o amor das coisas no seu
tempo
futuro
é
terrivelmente profundo, é suave,
devastador.
As
cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas
irmãs habitavam no cimo do movimento
como
seres pasmados.
Às
vezes riam alto. Teciam-se
em seu
escuro terrífico.
A
menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca
da noite.
Cantava
muito baixo.
Parecia
fluir.
Rodear
as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia
nas noites terrestres.
Eu
quero gritar paralém da loucura terrestre.
— Era
húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor.
Oh, exemplo extremo.
Havia
uma essência de oficina.
Uma
matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as
suas maçãs centrípetas
e as
uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a
magnólia quente de um gato.
Gato
que entrava pelas mãos, ou magnólia
que
saía da mão para o rosto
da mãe
sombriamente pura.
Ah, mãe
louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos
tocavam por cima do ardor
a carne
como um pedaço extasiado.
Era uma
casabsoluta — como
direi?
— um
sentimento
onde algumas pessoas morreriam.
Demência
para sorrir elevadamente.
Ter
amoras, folhas verdes, espinhos
com
pequena treva por todos os cantos.
Nome no
espírito como uma rosapeixe.
—
Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora
nas palavras.
Prefiro
cantar nas varandas interiores.
Porque
havia escadas e mulheres que paravam
minadas
de inteligência.
O corpo
sem rosáceas, a linguagem
para
amar e ruminar.
O leite
cantante.
Eu
agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago
para cima essa imagem de água interna.
—
Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial
do poema.
Ou o
poema subindo pela caneta,
atravessando
seu próprio impulso,
poema
regressando.
Tudo se
levanta como um cravo,
uma
faca levantada.
Tudo
morre o seu nome noutro nome.
Poema
não saindo do poder da loucura.
Poema
como base inconcreta de criação.
Ah,
pensar com delicadeza,
imaginar
com ferocidade.
Porque
eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com
furibunda concepção. Com
alguma
ironia furibunda.
Sou uma
devastação inteligente.
Com
malmequeres fabulosos.
Ouro
por cima.
A
madrugada ou a noite triste tocadas
em
trompete. Sou
alguma
coisa audível, sensível.
Um
movimento.
Cadeira
congeminando-se na bacia,
feita o
sentar-se.
Ou
flores bebendo a jarra.
O
silêncio estrutural das flores.
E a
mesa por baixo.
A
sonhar.
Faixa do disco "Entre nós e as palavras" (Sony, 1997) — projecto "Os Poetas":
música para poesia de Al Berto, Mário Cesariny, António Franco Alexandre,
Herberto Helder e Luiza Neto Jorge
(restantes compositores: Margarida Araújo, Gabriel Gomes e Francisco Ribeiro)
Herberto Helder é considerado como um dos maiores poetas europeus contemporâneos ou o "maior poeta português da segunda metade do século XX" e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa. Nasceu em Funchal, Ilha da Madeira em 23 de novembro de 1930. Faleceu em Cascais em 23 de março de 2015
Taciana Oliveira – Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e comunicóloga. Na vitrolinha não cansa de ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin. Some strange music draws me in…