por Taciana Oliveira__
OLHO DE LINCE
quem fala que sou esquisito
hermético
é porque não dou sopa estou
sempre elétrico
nada que se aproxima nada me é
estranho
fulano sicrano e beltrano
seja pedra seja planta seja
bicho seja humano
quando quero saber o que ocorre
à minha volta
ligo a tomada abro a janela
escancaro a porta
experimento invento tudo nunca
jamais me iludo
quero crer no que vem por beco
escuro
me iludo passado presente
futuro
urro arre i urro
viro balanço reviro na palma da
mão o dado
futuro presente passado
tudo sentir total é chave de
ouro do meu jogo
é fósforo que acende o fogo de
minha mais alta razão
na seqüência de diferentes
naipes
quem fala de mim tem
paixão
SALOMÃO, Waly. "Olho de lince". In:"Waly Salomão". In: MORICONI, Ítalo (org.). Destino poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010.
FÁBRICA DO POEMA
In memoria de Donna Lina Bo
Bardi
sonho o poema de arquitetura
ideal
cuja própria nata de cimento
encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair
faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa,
fiapo a fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à
mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo
esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca
houvera sido.
acordo!
os olhos chumbado
pelo mingau de almas e os
ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos
sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos
estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações,
metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo
fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afunda no
sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é
sob que máscara retornará o
recalcado?
(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma
expressão
por demais definia, de
sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão
mágica
vou rasurá-la daqui do poema.)
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?
ASSALTARAM A GRAMÁTICA
(Assaltaram a gramática
Assassinaram a lógica
Meteram poesia
na bagunça do dia a dia
Sequestraram a fonética
Violentaram a métrica
Meteram poesia
onde devia e não devia
Lá vem o poeta
com sua coroa de louro,
Agrião, pimentão, boldo
O poeta é a pimenta
do planeta!
(Malagueta!)
(Extraído do livro Mais Algumas Canções)
Waly Dias Salomão (Jequié, Bahia, 1943 – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2003). Poeta, produtor cultural, diretor artístico e letrista de música popular brasileira. Distingue-se na poesia por uma estética do excesso e da ruptura, num constante exercício de liberdade artística. Fonte: clica aqui