Uma crônica do livro A dançarina, de Marisa Teixeira

por Marisa Teixeira__




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                       O salão é um apêndice de outro maior. Vizinho dos banheiros, se prestava ser visitado por casualidade. Acanhada, pregava-me à parede à espera de não ser notada. Ele me achou. Falou que eu estava com cara de assustada e chamou para dançar. Olha, eu não danço direito. Tudo bem, não custa tentar. Tinha um jeito manso de enlaçar. E apesar de o ritmo exigir pressa, ia num passo maneiro fácil de acompanhar. Pela lateral de seus ombros meus olhos cresciam em fascinação com os rodopios dos casais. A variedade de passos. A agilidade das pernas. A ondulação dos quadris. Você não é daqui, né?  São Paulo. De que lugar? Ipiranga. Que coincidência, moro no Ipiranga. Você vem sempre aqui? Às vezes. Como você se chama? Marisa. Você é professora? Não. Leva jeito. Intermináveis minutos depois, um obrigado e um beijo no rosto. Um cartão espalmou-se na minha mão. Apertei os olhos, a lente de contato não permitia acuidade. Fred, ele facilitou. Sedutor, presenteou-me com dois ingressos para um baile em um salão no Ipiranga. Para mim e minha amiga. Fomos. Os salões, aprende-se, têm lá suas convenções. Como a questão da mesa. Forasteiros ficam com os espaços marginais.  Significa dificuldade em ser vistos e possibilidade de levar chá de cadeira. E ser alvos da animosidade do público feminino. Criamos as nossas regras. A primordial: homens não sentam a nossa mesa.


                        Avisado, Fred se fez de rogado. Deixou seu um terço de dinheiro e me tirou para dançar. Uma, duas, três, quatro vezes. Corpo e rosto colados e o mesmo compasso dois e dois. Qualquer que fosse a música. Elogios a minha apresentação. Ao meu sorriso. Mão que resvalava inquieta pelas minhas costas. Descia pelo meu braço. Lábios que tentavam roçar os meus cabelos. O que eu fazia quando sentia um homem? Sem equívocos. Eu estava sendo cantada, no mínimo. Não faço nada porque nunca percebo. Com uma pressão do braço ele me encostou a sua virilha. Desconcertada, arredei centímetros. Por que eu tinha aceitado os ingressos, então? Para conhecer outro salão. Para dançar.  Ele, não. Procurava por uma mulher. Tinha vida definida. Os filhos moravam em outra cidade.  Queria aproveitar seus sessenta anos. Embebido em formol, certamente. Cabelo curto preto e pele sem rugas lhe emprestavam idade de quarenta e tantos. Eu estava preocupada com a diferença de escolaridade? Ele não ligava para isso. Já tinha namorado professora, diretora, gerente, advogada.  Sou psicóloga. Foi a vez dele se desconcertar. Senti-me desforrada. Não falou mais. Desistiu de me agarrar. Quando o encontrei outras vezes fez que não me conhecia. Mas o refrão da última música que dançamos ficou na minha memória. Atiçando minha indignação. Calhou de eu perguntar ao Airton, no trabalho, se eu cantasse um pedacinho da música ele identificaria o nome do cantor. Que eu falasse qualquer trecho que ele jogava no Google. Diz assim: Vá Com Deus. Ele sorriu complacente e falou: Roberta Miranda. 


*páginas 18 a 21 do livro A Dançarina (Editora Da minha Aldeia)




Marisa Teixeira
 nasceu na cidade de São Paulo e dedicou-se à psicologia escolar e educacional, à psicanálise e à pesquisa acadêmica. Em 2008 descobriu os salões de bailes. Em seguida, na tentativa de conciliar universos tão díspares, começou a narrar suas aventuras no formato de crônicas em seu perfil nas redes sociais, sob a categoria “A Dançarina”.