por Davison Souza__
10 anos da política de cotas raciais no Brasil: um ponto de ruptura na colonialidade
“Se até
na escola a professora Solange me olha com ódio e descaso
Só por
que sua filha perdeu a vaga pra mais um pretinho privilegiado”
- Kyan
Falar
de políticas de cotas no Brasil implica pensar e questionar o lugar da
universidade pública. Historicamente a universidade no Brasil se constitui
enquanto lugar branco, heteronormativo e masculino. E por longas décadas esse
espaço excluiu/exclui corpos fora da norma padrão, ou seja, coros negros,
indígenas, pessoas com deficiência e as populações trans, por exemplo.
Para
termos uma noção desse fosso, no interlúdio da música capítulo 4 versículos 3
do grupo de rap Racionais Mc´s, do álbum Sobrevivendo no Inferno de 1997 temos
a seguinte informação: “Nas universidades públicas apenas 2% dos estudantes são
negos”, seguindo nesse caminho, a professora Sueli Carneiro no livro, Racismo, Sexismo
e Desigualdade no Brasil, relata que “[...]segundo dados do Ministério da Educação,
em 2000 apenas 2,2% do contingente de formados nas universidades eram negros,
enquanto os brancos representavam 80%” tais dados, nos revelavam a ausência de
corpos negros nas universidades, e que, precisávamos de uma política para
tentar equilibrar a desigualdade gritante desses números.
Nesse caso, percebeu-se que
políticas públicas de caráter universal, não davam conta da realidade das
populações negras no Brasil, isso porque o discurso de “somos todos iguais”
caia por terra, quando se analisava dados quantitativos. Não há igualdade em um
país construído a base do genocídio das populações negras e indígenas, não há
igualdade em uma nação que pautou sua economia na exploração de corpos negros,
não há igualdade em um país que é atravessado pelo racismo.
Foi nessa conjuntura que o Movimento
Negro voltou a pautar as políticas de ações afirmativas, que já vinha sendo
discutida por esse Movimento desde a década de 1980. Em 2001 ocorreu em Durban
na África do Sul, uma conferência Contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, convocada pela Organização das
Nações Unidas (ONU). No referido evento, o Brasil enquanto Estado, reconhece
pela primeira vez o racismo presente em suas terras, e com isso, assume o
compromisso internacional de combate às desigualdades existentes no país e o
compromisso com a implementação de políticas de ações afirmativas.
Em
2006, afloraram as discussões acerca das políticas de cotas no Brasil. Grupos
favoráveis e grupos contrários as cotas raciais debatiam a necessidade dessa
política. O grupo contrário dizia que as cotas eram inconstitucionais, diziam
que “Se forem aprovadas, a nação brasileira passará a definir os direitos das
pessoas com base na tonalidade da sua pele, pela raça.”. Tais argumentos,
inconsistentes, não dialogavam com a realidade do Brasil. Nesse país, os
direitos sempre foram definidos pela cor da pele, e essa pele é branca, que
desde meados de 1500 opera seus privilégios em detrimento das populações negras.
A população branca necessita ser racializada, a ser pensada enquanto raça
opressora, que se beneficia diretamente e indiretamente do racismo vigente no
Brasil. Em resposta, o grupo pró cotas, criou um manifesto favorável as cotas
raciais, expressando firmemente que o grupo contrário não representa as
populações negras e refutando os argumentos inconsistentes de tal grupo.
Então, em 2012, por decisão unanime,
o Supremo Tribuna Federal (STF) garante a constitucionalidade das políticas de
cotas, e implementa a Lei 12. 711/12, que garante a obrigatoriedade de cotas em
universidades públicas e institutos federais de educação por 10 anos, chegando
a seu limite nesse ano, de 2022. A Lei garante que 50% das vagas sejam para os
educandos/as egressos de escola púbica, desses percentuais, 50% destinam-se as
cotas raciais, ou seja, pretos/as, pardos/as, indígenas e Pessoas com
Deficiência (PCD) de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatísticas (IBGE).
As políticas de cotas completam seus
10 anos de vigência neste ano. Nesse momento precisamos frisar a importância
dessas políticas para a construção de um país menos desigual. Precisamos
analisar os números de acesso, de permanecia desses/as educandos/as, de
conclusão, se esses/as estudantes estão no mercado de trabalho. A avaliação das
cotas precisa ser rigorosa e imparcial. Pois, segundo o professor Dagoberto
Fonseca (2009, p. 111) “[...]as cotas seriam medidas focais para promover, em
médio e longo prazo, melhor distribuição de renda, mas também para democratizar
o acesso a espaços sociais e culturais antes impossíveis para negros – como a
universidade pública, cargos de maior prestígio e bons salários”. E durante a
avaliação dessa política, todas essas informações devem ser levadas em
consideração. É fundamental nesse processo de avaliação a presença do Movimento
Negro e demais pesquisadores/as negros/as que estudem essa temática. Vale
frisar que se não houver a revisão, a política de cotas continua válida, sendo
alterada/ou revogada apenas por lei.
Em
fevereiro de 2022, o deputado Kim Kataguiri (DEM – SP) protocolou o projeto de
lei (PL) 4125/21 que visa encerrar as políticas de cotas raciais no Brasil.
Segundo a PL, as cotas raciais ferem a Constituição por classificar pessoas com
base na cor e que as cotas deveriam se destinar apenas as pessoas pobres. Tais
argumentos, se assemelham aos argumentos apresentados no manifesto contra as
cotas de 2006, discurso esse que está a favor das ideologias opressoras. Concordamos
com Silva, Pereira e Oliveira quando falam que: “A dimensão ideológica dos
discursos contrários às políticas de cotas raciais nas universidades públicas
brasileiras evidenciam o quanto certos discursos, marcados por um teor
ideologicamente opressivo, operam em prol do silenciamento de qualquer
ideologia que busque revolução, evolução e liberdade dos grupos oprimidos.”
(SILVA; PEREIRA; OLIVEIRA, 2020, p. 30).
Esses
discursos que trabalham em prol dos grupos opressores, que são utilizados
contra as conquistas sociais, são postos em destaque nesse governo retrógrado,
que tem como política o racismo, homofobia, misoginia e diversas discriminações
que embasam o discurso violento da gestão bolsonarista. As professoras Araújo e
Carvalho trazem um panorama da conjuntura atual, segundo elas "O
Bolsonarismo está para além da figura de Jair Bolsonaro, embora esta figura
grotesca e bizarra tenha significados sociopolíticos, trazendo à baila marcas
históricas da formação social brasileira e da nossa cultura política,
materializadas no conservadorismo, no machismo, no racismo, na misoginia, nas
discriminações de múltiplas naturezas[...] (ARAÙJO; CARVALHO, 2021, p. 151)
Diante de um governo que busca
acabar com as conquistas sociais, adquiridas por meio de lutas históricas, a
renovação das políticas de cotas é incerta. Com isso, necessitamos estar
atentos/as e apostos para que possamos lutar em favor da renovação dessa política
no Brasil. Segundo dados alocados no site Agência Brasil (2020, s/p) de um
levantamento feito pelo site Quero Bolsa com dados do IBGE “Os negros chegaram
a 38,15% do total de matriculados, percentual ainda abaixo de sua
representatividade no conjunto da população – 56%”, diante de tal número,
evidencia-se a necessidade da renovação da política de cotas. Pois, enquanto o
racismo ainda vigorar nesse chão e pessoas negras não chegarem a espaços de
liderança e poder, enquanto formos a minoria na educação superior, enquanto os
currículos da educação básica e superior forem eurocêntrados e negarem saberes,
histórias e culturas negras e indígenas o sistema de cotas ainda se fará
emergente no Brasil.
REFERÊNCIAS
A ÍNTEGRA DO MANIFESTO CONTRA
AS COTAS RACIAIS. Congresso em Foco, 2006. Disponível em: https://congressoemfoco.uol.com.br/amp/projeto-bula/reportaem/a-integra-do-manifesto-conntra-as-cotas-raciais//.
Acesso em 09 de março de 2022.
ARAÚJO, Maria do Socorro S. de;
CARVALHO, Alba Maria P. de. Autoritarismo no Brasil do presente: bolsonarismo
nos circuitos do ultraliberalismo, militarismo e reacionarismo. Revista Katál, Florianópolis, v. 24,
n. 1, p. 146-156, jan/jun, 2021.
CARNEIRO, Sueli. Racismo,
sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
COSTA, Gilberto. Cresce total
de negros em universidades, mas acesso é desigual. Agência Brasil, 2020.
disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-11/cresce-totaç-de-negros-em-universidades-mas-acesso-e-desigual.
Acesso em 09 de março de 2022.
FONSECA, Dagoberto José. Políticas
públicas e ações afirmativas. São Paulo: Selo Negro, 2009
GOMES, Nilma Lino. O
Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação.
Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
MC´S, Racionais. Sobrevivendo
no Inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
PROJETO ACABA COM AS COTAS
BASEADAS EM COR OU RAÇA NAS UNIVERSIDADES. Câmara dos Deputados, 2022.
Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/850137-projet-acaba-com-as-cotas-baseadas-em-cor-ou-raca-nas-universidades/.
Acesso em: 09 de março de 2022.
SILVA, Raul G. C. da; PEREIRA,
Jerónimo; OLIVEIRA, Marília A. S. de. As cotas raciais e o acesso ao ensino
superior em debate no Brasil: uma investigação semântica-discursiva à luz da
análise crítica do discurso. Revista Areia, Alagoas, n. 3, p. 20-32, 2020.