A palavra acre, de Marise Hansen, é um livro para
começar a ler já em ponto alto da emoção – uma comoção pela beleza. A partir do
primeiro poema, que dá título à coletânea, não se pode mais duvidar da poeta, da
sua capacidade de compreender uma intimidade, uma fisiologia vocal em movimento,
a nudez das palavras diante do som. Poucas pessoas talvez prestem atenção ao
corpo das palavras, acreditando somente na sua roupagem gráfica ou mesmo naquilo
que concluímos ao vermos vocábulos passeando por aí: seu sentido. O corpo das
palavras, o antes da letra, é a sua forma primária: saiu de uma boca, entrou
nos ouvidos. A primeira poesia é falada.
Porém, ao prosseguirmos na leitura deste livro,
percebemos que a poeta também explora de maneira habilidosa a palavra vestida, explorando
a forma e a página, o poema visual, o aproveitamento do espaço como parte necessária
do seu artefato poético. Na poesia de Marise Hansen, visual ou não, a
palavra é o cerne do poema, mantendo, ao mesmo tempo, sua realidade rítmica e
sonora, concreta. Nesse sentido, Marise Hansen se aproxima da poesia
primordial – compondo os coros do “re-ligare” e daquela que Símias de
Rodes, há 300 a.c, em O ovo, escreveu com um grafismo que formava a
imagem título.
Estando ligada à tradição, a que caminha e
incorpora o tempo novo, a poeta traz aquilo que a poesia construiu de melhor e
soma, nos seus versos, uma linguagem simples – cujo teor é complexo; um
vocabulário contemporâneo – que se atualiza ainda mais nos temas; uma sintaxe inteligível
– que oferece camadas de sentido. Sua poesia, rica em melopeia, fanopeia e logopeia,
explora a sensorialidade, na medida em que não só apresenta os aspectos sonoros
– deliciosas assonâncias e aliterações – e plásticos, como também usa
habilmente a sugestão, a inversão e toca, com uma profusão de elementos e
figuras de linguagem, o imaginário. Isso tudo faz com que A palavra acre
seja um livro de reflexão e deleite, de fruição artística e crítica, de
alumbramento e de desautomatização da palavra, convite ao seu redescobrimento.
Nos temas, esta coletânea deixa à mostra um
eu-lírico que é assumidamente mulher na sua contemporaneidade, no embate e no
afeto com o mundo, na sua inserção em um sistema socioeconômico que faz com que
seja diferente, ainda, um homem escrever e uma mulher escrever. Uma mulher
escreve sob a angústia da interrupção. Em Dístico, o par poeta e
cotidiano se transforma em poeta versus cotidiano, pois as tarefas
que a mulher deve cumprir interrompem a escrita. Movida pelo desejo da palavra
“Quando posso, quando morro?/ − Escrevo”, ela dribla a impossibilidade materializando
sua voz no poema.
Com a faca cabralina cortando os versos e o
cenário de um mundo caduco drummondiano, a palavra “acre”, no que tem de
sonora, bela, curta, sensorial, oculta, estranha e ácida retrata com perfeição
a poesia de Marise Hansen: existencial (como é difícil se relacionar e ser
fiel aos próprios valores), política (“Ditadura/ não se/ comemora”),
ética (o papel do amor e da gentileza em um mundo próximo da barbárie). A poeta
constata o mal, as dificuldades de relacionamento, as modificações internas que
teimam em nos tirar o que temos de bom, a casa como refúgio e como espaço
limitado para a nossa construção, os tempos de ódio e o ódio como doença e
remédio. Trazendo a Lídia de Horácio e de Ricardo Reis (Fernando
Pessoa), a poeta cria uma sequência de odes cujos aconselhamentos instauram
uma receita de bem-viver em um mundo – e principalmente um país – assolado
pelos boçais: “De gente pequena, Lídia,/ tenhamos não raiva / mas pena”.
Marise Hansen nos presenteia com um livro que mostra – com relâmpagos de
sagacidade – o papel transformador da palavra que faz do ódio, amor; do
despejo, um disparo; do covarde, coragem.
A palavra acre
A palavra acre
tem qualquer coisa que quebra
quando na boca.
A palavra ogro
tem qualquer coisa que,
em bico emitida, espanta.
A palavra sexo
tem qualquer coisa que,
escandida na língua, intriga.
A palavra sintonia
tem qualquer coisa que atrai,
despudorada, a palavra fina.
A palavra aperto
com sua cola entre os lábios,
o assobio interdita, silencia.
A palavra avesso,
em espessura e antipatia, a sombra
da pronúncia habita.
A palavra inveja
tem qualquer asco que lembra
merda, entredentes dita.
A palavra incontornável
tem ritmo que dá preguiça,
obriga oprime subordina.
A palavra orgulho,
em estado sólido, tem cume pontiagudo,
que um sopro só derruba.
A palavra amor
tem uma coisa que nela não cabe
e vaga sem paz, sem peso, sem pouso, no ar.
Dístico
Escreveu o primeiro verso e
(foi desligar o fogo
serviu o jantar
socorreu o mendigo
aparou uma taça
pagou uma multa
cortou o cabelo sem ver
a lua
postou uma carta sem pôr
o cep
perdeu a carta
de motorista
fez uma lista
atualizou os dados
atendeu a um chamado
tirou uma foto fora
de foco
prorrogou o prazo
fez um curativo
fez as contas nas costas
da mão
apagou um incêndio
caiu na cama)
o segundo ficou para amanhã.
Pedagogia
Desaprendi
A me enfeitar pro baile
A virar estrela
A rezar o terço
Como se toma chuva
Como se telefona
Mas vou reaprender.
Aprendi
A sorrir sem graça
A fazer de conta
A voltar a casa
Como se põe a mesa
Como se corta a asa
Mas vou desaprender.
***
A palavra acre
Marise Hansen
Poesia
Ed. Patuá
2022
*texto originalmente publicado como
prefácio
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).