Anthony Almeida__
Meu primeiro alumbramento geográfico acontece na 4ª série. Deve ser, digamos, dia 14 de maio de 1999, uma sexta-feira pré-feriadão. Digo geográfico porque é geografia o que acontece dentro de mim. Mas a proposta de tia Norma, minha professora de óculos na frente dos olhos claros, é histórica – e cartográfica. A epifania se faz na sexta, mas a responsável por ela é a terça, 18 de maio de 1999: aniversário do município de Caruaru, 142 anos de emancipação política. Feriado municipal, portanto. Sendo ele na terça, minha escola pública obedece ao ponto facultativo e imprensa a segunda. A professora Norma, então, aproveita o intervalo para, na sexta, nos propor um trabalho sobre a história do município. O trabalho deve ser entregue na quarta, dia 19.
Na 4ª série de 1999, uma professora única é a professora de tudo. Depois do recreio, reabastecidos com merenda de macarrão com almôndegas, voltamos para terminar um exercício de matemática. Terminado o somatório, guardamos cadernos e começa a atividade caruaruense. Norma abre sua pasta e passa de banca em banca entregando um pedaço do Agreste para a gente.
O papel sulfite tem um mapa de Caruaru com todos os seus municípios limítrofes – que, na hora da distribuição, a gente ainda não sabe o que significa. Por isso, nas letras redondas acima do mapa, a orientação diz: identifique o município de Caruaru e seus vizinhos, nomeie-os e pinte cada um deles. Capriche! Além da orientação por escrito, mais duas, verbais, e um esclarecimento:
Só não pode pintar de azul, tá certo? Azul a gente só usa pra água; façam a pintura agora e, de tarde, vocês podem vir para a biblioteca para pesquisar o nome dos municípios limítrofes de Caruaru. Temos alguns atlas de Pernambuco lá nas estantes, é só pedir para a tia Graça mostrar onde ficam que ela mostra pra vocês. Limítrofe? Limítrofe é que faz limite, ou seja, vizinho. Todos esses municípios que estão em volta de Caruaru – esse que tem o formato parecido com um violão – são municípios limítrofes do nosso.
As letras redondas são da própria professora. O croqui também. Em 1999, as provas e atividades complementares são feitas à mão num estêncil roxo. Depois de escrito, o estêncil é rodado com álcool num mimeógrafo. A cada rodada sai uma nova cópia roxa dum recorte do Agreste pernambucano, o recorte de Caruaru e seus limítrofes. A maioria de nós gosta de cheirar as atividades mimeografadas e cheirosas de álcool.
Cheiro, cheiro de novo, vejo meus amigos cheirando Caruaru e, inebriado, me encanto de colorir o violão de vermelho e seus vizinhos de arco-íris. Arco-íris sem azul e sem anil, azul é só pra água, né, tia Norma!? Pinto um de verde claro, outro de lilás, mais um de verde escuro, mais outro de laranjado e sigo pintando. Não vejo a hora de conhecer, mais tarde, na biblioteca, que o verde claro é Vertentes e o verde escuro é Brejo da Madre de Deus. O lilás é Riacho das Almas, o laranjado, Agrestina. Não vejo a hora de crescer para pintar cada um deles com os passos das minhas andanças.
Enquanto pinto Agrestina, tia Norma, professora de tudo, me ensina outro fragmento do mundo. Ela escreve, com giz amarelo, no quadro verde escuro, a parte histórica da atividade: pesquisar o hino de Caruaru, desenhar e pintar a bandeira do município. Acrescenta a ilustração de uma casinha, feita em giz rosa, e desenha, dentro de mim, o encanto pela busca das geografias e pela exploração dos lugares.
Minha
escola. Maio, 1999.
Anthony Almeida é professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP, onde leciona. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. Atualmente é cronista do Jornal Tribuna Livre e da Revista Mirada. É doutorando em Geografia, pela UFPE, editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica, e colecionador de cartões-postais. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com