por Claudiana Alencar__
Este livro de contos de Argentina Castro é um
canto de libertação e de amor. Libertação do decreto sub-reptício de
silenciamento de mulheres que estrutura a vida social contemporânea; libertação
contra o apagamento da arte das escritoras, ressonância de colonialidades
engendradas como herança de um passado colonial e patriarcal tão presente. É um
canto de amor à peleja de mulheres que cotidianamente resistem às dores e
violências cotidianas, em meio à intensidade do amor ou à dureza da sequidão,
do desamor.
Mas como um conto se associa a um canto? Em Contar
o conto, Jorge Luis Borges já nos indicava que “o conto, pertencendo ao
gênero narrativo, e por isso assumindo as características que lhe são próprias,
como a narratividade condensada e a ficcionalidade, também pode se estreitar
com o gênero lírico”. Essa aproximação com o canto, com o poema, se dá porque a
brevidade tanto do conto quanto do poema, permitem vivenciar a densidade do
instante, a visualização estética que permite explorar a intensidade do
momento. Assim, o conto e o canto permitem uma interação com a leitora, com o
leitor, que vivenciam uma expressividade aliada à intensidade do singular, de
um momento único, tanto no poema, quanto no conto.
A obra “Bomba D’água Coração” já inicia trazendo
a força dessa expressividade. Em “O chocalho da memória”, o primeiro conto do
livro, a escritora traz a cadência e ritmo de um tempo passado/presente na
descrição do tanger das vacas e do barulho do chocalho que intensificam o
momento narrado, dando lugar ao trabalho da memória. Os ritmos do
chocalho, as onomatopeias usadas no conto para descrever o tanger do gado, nos
permitem sentir a intensidade da saudade da primeira personagem da obra, Marina.
O trabalho estético em “O chocalho da memória” provoca uma intensificação
daquele instante em que a escuta dos barulhos pela artista transporta a
personagem a um espaço e a um tempo longínquo. Essa intensificação de um
momento ou de uma temática é o que caracteriza o conto, conforme Edgar
Allan Poe, mais do que a brevidade de sua narrativa. O livro nos conduz por
esse movimento de intensidades que permite com que a obra se utilize da memória,
ancorada em elementos do cotidiano, como o chocalho, a bomba de água, na
tessitura de contos que atuam contra o memoricídio.
O trabalho sobre a memória também é cantado
liricamente no conto que dá título à obra: “Bomba D’água Coração”. Pautando uma
narrativa em primeira pessoa, a narradora se refere a sua ancestralidade, como
filha de uma mulher indígena e de um sertanejo, trazendo à tona lembranças de uma
história que precisa ser puxada, como a água, por uma bomba, que assim como a
memória, nutre e dá vida, não apenas à trajetória da narradora, mas a história
de um povo que, indígena e sertanejo, se tornou também periférico. Essa memória
é de uma coletividade inteira na luta pela vida: “Aquela bomba d’água era o
coração que unia aquela gente”.
A memória, que segundo os nossos povos
originários, não é apenas passado, mas é presente, atravessa a história de
tantas mulheres, personagens dos contos de Argentina. Ao mesmo tempo, em que
essas mulheres-personagens são recursos narrativos da ficcionalidade, que fazem
ressoar várias vozes e discursos femininos, mostrando a heterogeneidade das
mulheres contemporâneas, elas também aproximam os temas dos contos ao real, ao
cotidiano de tantas mulheres que enfrentam diversas formas de violência e
opressão. Marina, Catarina, Estela, Zulmira, Marli, Maria dos Prazeres, Fátima,
Ivone, Alice, Zizi, Flor, Rosinha, Marinete, as muitas mulheres dos 30 contos
que constituem a obra “Bomba D’água Coração”. Quantas são? Quantas fomos? Quantas
somos? Quantas feridas, que se fazem, se abrem e se escondem na solidão e na
violência, podem nos atravessar na brevidade da estrutura narrativa destes
contos?
Embora
Cortázar afirme que “todo conto é delimitado, o que não permite tecer uma ética
ou visão de mundo a partir desse gênero narrativo”, alguns contos, como os
machadianos, por exemplo, perturbam essa delimitação trazendo tanto as
críticas, a denúncia de seus autores/autoras sobre o contexto da narrativa,
quanto uma cosmovisão que propõe uma nova realidade. Desse modo, as mulheres
dos contos de Argentina Castro trazem representações dos sofrimentos de tantas
mulheres vulnerabilizadas pelas políticas de morte, como denuncia a narradora do
conto “Mãe é gente”: “Desse lado, as mães pretas, as mães ‘índias’,
precisam tirar força de onde não tem para dar, não só comida e orientação, mas
a cara a tapa para a polícia, para o traficante, para o patrão, para a milícia,
para a injustiça, para a humilhação que é ser pobre e sem informação”.
Argentina nos faz conhecer na construção narrativa dos seus contos, essas
muitas mulheres, com muitos nomes e muitos rostos que sofrem abuso, engano,
violência doméstica, objetificação de seus corpos. Sentimos nos contos, a dor
de mães que se desesperam diante de seus filhos mortos pela necropolítica, como
no trecho do conto “Quintal Negreiro”: A morte que, mais uma vez e,
precocemente, não se acanha e faz seu serviço dando tiros certeiros em um filho
de um quintal negreiro. Contudo, Argentina, como uma escritora que não
dissocia a sua escrita literária daquilo que acredita, como uma mulher que faz
da sua vida uma luta para que outras mulheres, crianças e adolescentes tenham
direito a sonhar, também
constrói em seus contos, as insurgências, os sonhos, as utopias. Em suas
construções narrativas, ela olha para a potente força de todas nós. Das vozes da
ancestralidade, a personagem do último conto, Marinete, se fortalece e nos
fortalece no enunciado: — Você é filha de uma rainha e, portanto, é uma
rainha também e, como tal, é assim que deve ser tratada.
Tenho então a
alegria de dizer que, nestes contos de “Bomba
D’água Coração”, o canto de
amor de Argentina nos constitui a todas nós, não apenas em tristeza e dores,
mas em coragem e esperança. Na arte de fazer dos contos, somos mulheres que,
como a mãe da narradora (e da escritora), são um exército. Sejamos fartas como
a mãe, como a filha, como a Argentina Castro, que também nos faz por estes
contos “mulheres fartas de toda grandeza”.
* originalmente publicado como prefácio.
Referências
BORGES, J.
L. Contar o conto. In: Esse ofício do verso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
CORTÁZAR,
J. Alguns aspectos do conto. In: Valise de Cronópio. Tradução Davi
Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo:
Perspectiva, 1993. p. 147-163. (Coleção Debates).
POE, E. A. Review of Twice-Told Tales. In: MAY, Charles E. (edited by). Short Story Theories. 6th ed. Ohio: Ohio University Press, 1987. p. 45-51.
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