Desejo de estio | Anthony Almeida

 Anthony Almeida__

 

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"Vamos ver a previsão do tempo. A faixa do litoral do Rio Grande do Norte ao litoral de Sergipe está classificada pelos meteorologistas como área de perigo para temporal com chuva volumosa. No Recife, são esperados 100 mm nesse sábado."


– Eita peste! Vai dar problema... Muito problema, vai ser rojão... Vai morrer gente, mais uma vez... – foi isso que eu pens... disse, não consegui não verbalizar, depois de ver a previsão do tempo do Jornal Nacional, na noite da sexta pré-tempestade.


A geografia me ensinou, meus anos de moradia no Recife, também: choveu fraco, alaga um monte de rua, a cidade engarrafa; médio, tem feriado de chuva, um monte de gente não consegue sair para trabalhar ou estudar; forte, morre gente, sempre. Chover mais de 100 mm em um dia é bem mais do que forte. O chão se desfaz com a chuva. Vai morrer gente, um monte.


Minha clarividência não foi mau agouro. Até bati na madeira e desejei que minhas palavras não se realizassem. A geografia, porém, me ensinou, meus anos de moradia no Recife, também: na noite da sexta-feira, depois de ver a previsão da ciência, eu já sabia da tragédia antes que ela acontecesse. Fosse no Atlântico, o temporal poderia ter muitos milímetros, mas no continente, no populoso e inadequadamente povoado litoral leste do Nordeste, lotado de cidade abarrotada de gente, isso causaria, causou uma desgraceira.


Estou seguro no oeste paulista, foi-se o resto de uma frente fria e o meu moletom, minha jaqueta jeans e as meias, que aqueceram as noites e os dias dos meus pés, estão no cesto de roupas. Serão lavados em breve e já voltei a usar camisetas e chinelas sem meias. Não preciso mais, por enquanto, dessas proteções contra o frio que as chuvas daqui trouxeram. Estou num lugar onde as pessoas celebram – Que bênção, vai chover no Nordeste! Mas a geografia, novamente, me ensinou, meus anos de moradia no Recife, também: chove muito no litoral brasileiro e, no outono-inverno, o litoral pernambucano costuma ver o céu se derramar, sempre, anualmente, e estamos no outono.


Estou longe e seguro. Mas também estou perto. Falta um mês para minha migração de retorno. Pernambuco e Recife já me povoam. O céu azul, com sua estrela cintilante, riscado pelo arco-íris e iluminado pelo grande sol pregado nesse azul, já iluminam meu horizonte. Ainda que não me acendam por agora, me acenderam outrora, sou pernambucano de nascença e querência. Tenho meus quereres por seu céu, seu chão e lamentei meu previsível receio. Lamentei, mas não pude negá-lo. Não sou negacionista.


Me restou apenas o desejo. Quis, mas não pude desejar que o chão-natal fosse mais resistente às águas e que não se desfizesse sob os pés do povo. Que, ainda que frágil, fosse coberto por vegetação, por concreto, por lonas, por qualquer coisa, menos pelos pingos d'água incessantes e pelo triste apelido de 'área de risco'. Que, ainda que descoberto, não fosse ocupado por bairros e bairros e bairros e gentes e gentes e gentes que só tinham o chão desses montes ou beiras de rio para morar. Que, ainda que povoadíssimos, fossem alertados e alertados e ainda mais alertados até que convencidos, meu povo, a abandonarem suas casas, para vê-las sendo arrastadas pelo deslizamento das barreiras ou pela correnteza do Capibaribe, seus afluentes e escoamentos. Que é triste ver sua casa cair, eu sei, já vi a minha, mas é menos ruim ver do que cair e ser arrastado junto.


Mas a geografia me ensinou, meus anos de moradia no Recife, também. Não posso desejar o impossível nem querer uma solução rápida para um amontoado de problemas mais que centenários. A chuva vem e continuará a vir. Foi um evento adverso, as adversidades, contudo, seguirão com os anos e cada vez com mais frequência. Hoje, uma semana depois daquela sexta-feira, em que lamentei a previsão noticiada no jornal, o povo pernambucano chora a morte de 126 pessoas e procura por 4 desaparecidos, com mais de 9 302 desabrigados.


E eu só queria um desejo, que fosse realizado naquela mesma sexta. Não, não, poderia ser antes. Naquele dia, 5 pessoas já haviam morrido pelas águas. Que meu desejo único fosse realizado antes que eu o desejasse, antes que eu sequer o imaginasse. Que a atmosfera fosse vidente, adivinha, compadecida e atendesse o meu simples desejo: um estio.


 

Presidente Venceslau. Maio e Junho, 2022.

 

 

 


Anthony Almeida é professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP, onde leciona. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. Atualmente é cronista do Jornal Tribuna Livre e da Revista Mirada. É doutorando em Geografia, pela UFPE, editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica, e colecionador de cartões-postais. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com