por Yvonne Miller__
Estou
passeando com Chico pelas ruas do condomínio, quando um casal de senhores sai de
um portão. Chico, por ser o cachorro mais boa praça do condomínio, é meio
famosão por aqui e graças a ele conhecemos quase todos os vizinhos. Mas esse
casal eu nunca tinha visto. Certamente não têm cachorro e devem sair pouco de
casa. Noto que os dois estão de máscara e, enquanto me aproximo, tiro a minha
do bolso e a coloco sobre boca e nariz. “Olha, ela tem máscara”, ouço a senhora
comentar pro marido. Acho estranho. No tom de voz dela tinha certa surpresa,
como se alguém como eu (e nem sei o que isso poderia querer dizer) dificilmente
andasse com máscara. Será que ela achou que eu sou negacionista? Bolsonarista? Ignorante?
Que não acredito na existência óbvia da pandemia? Que não ligo para a saúde do
meu próximo? Por um momento me arrependo de ter trazido esta máscara branca
hospitalar e não a vermelha do MST. Mas antes de chegar muito longe nos meus
pensamentos, ela começa a puxar assunto:
—
Cachorro lindo. Qual a raça dele?
— É border
collie.
— É um
caçador? — pergunta o senhor. Ele deve ter por volta dos 70 anos e a esposa
alguns anos a menos.
— Não,
não. É pastor.
— Ah,
pastor, né? A gente já teve um poodle.
Sorrio
educadamente embaixo da máscara. Conversa vai, conversa vem, sempre sobre
cachorros e as melhores raças para isso e aquilo, a importância de um bom
adestramento, a chatice dos latidos histéricos do cachorrinho da vizinha e
assim por diante. Até que a senhora para de falar, me olha de cima a baixo,
como se só agora me enxergasse de verdade, e pergunta com um tom curioso:
— E
você é o quê?
Eu sou
o quê? Ora mais!
— Um
ser humano, ué! — respondo da forma mais educada que consigo, tentando esconder
atrás duma risadinha forçada toda a minha indignação com a pergunta tosca.
— Sim,
mas qual sua nacionalidade? — especifica a senhora, aparentemente sem perceber minha
perturbação.
—
Alemã.
—
Alemã, né? — Ela repete e faz que sim com a cabeça, como se na verdade já
tivesse sabido a resposta o tempo todo.
Eu me
pergunto o que é que quer dizer esse “Alemã, né?” agora, mas ela continua
falando:
— Tem
um casal de alemães aqui no condomínio. Você conhece?
Fico surpresa.
Não sabia. Como por uma piada do destino, meio minuto depois, a tal da outra
alemã aparece na rua.
— Vem
aqui, Cláudia! Tem uma alemãzinha bem aqui, ó.
Alemãzinha?
Meu Deus, ela realmente não tá fazendo nada para melhorar a situação...
A
Cláudia se aproxima, me examinando quase que com interesse científico.
Novamente me sinto um bicho estranho sob os olhares dos três.
— Na realidade
sou austríaca — explica chegando ao nosso lado. — Neta de austríacos, para dizer
a verdade.
Mas a
outra não parece se importar com esses pormenores.
— Você
mora onde? — ela quer saber agora e eu digo que na casa amarela na rua do campo
de futebol.
— Tu
viu? — A voz é quase eufórica. — Ela tem sotaque e tudo!
Durante
o resto do passeio a pergunta “Você é o quê?” ficou ecoando na minha cabeça. Definitivamente
não sou negacionista nem bolsonarista, terraplanista ou afins, mas talvez tenha
sido algo ignorante na hora de responder. Provavelmente aquela senhora não era
mal-intencionada. Talvez fosse só um choque de gerações... E talvez eu seja
sensível demais com alguns temas... De volta em casa, pergunto para uma amiga conhecedora
das culturas brasileira e alemã:
“Tu
acha que fui grosseira?”
“Para
padrões brasileiros, sim. Para padrões alemães, não”, é a resposta dela.
“E a
pergunta dela não foi?”, retruco. Posso até ser culpada, mas não serei a única.
“Para
padrões brasileiros, não. Para padrões alemães, sim.”
Sim e
não, não e sim. Aí a coisa fica complicada. Quem sabe da próxima vez que me
fizerem uma pergunta como essa, responderei citando a escritora nigeriana
Chimamanda Ngozi Adichie: “Sou múltipla.”
O que é,
na verdade, basicamente a mesma coisa que eu falei. Mas nas palavras da
Chimamanda soa mais bonito.