por Adriane Garcia__
Na capa (fotografia de Adriana
Moura) vemos em destaque uma criança de pele negra vestindo uma camisa da
seleção brasileira. É assim que começa Estudo sobre o fim: bangue-bangue à
paulista, terceira parte de uma trilogia que a escritora Paula Fábrio
vem escrevendo.
O título se adequa com perfeição ao
livro. É estudo que parte da etimologia da palavra “bandido”, banido, exilado,
para dar conta de uma pequena amostra da sociedade brasileira, espécie de
sinédoque que toma as personagens que se movimentam em São Paulo e em João
Pessoa como o singular que explicará o plural. É um estudo sobre o Brasil de
2018 em diante, que não pode ser entendido sem o Golpe de 2016, quando uma
revanche da necropolítica se efetua e retira a presidente eleita Dilma
Rousseff da presidência do país, usando para isso conchavos políticos,
judiciais e midiáticos em que o discurso anticorrupção irá manipular o
eleitorado. Mas não é tão simples assim. É muito mais complexo. E é isso que
podemos ver na trama e nas entrelinhas da construção das personagens de Paula
Fábrio neste Estudo sobre o fim.
A partir do furto de três bicicletas em
um condomínio de classe média, a autora retrata as relações pessoais e sociais.
Paula Fábrio conseguiu com uma narrativa de muitas vozes, oriundas de
classes sociais diversas, nos dar a ideia de uma polifonia nacional
esquizofrênica, que inclui a paranoia do inimigo invisível – um comunismo
brasileiro, por exemplo. É notável que a construção do texto muda o tipo de
registro de linguagem a partir do mundo que está sendo narrado e que isso se
opera com muita naturalidade – lemos até mesmo os comentários de internet
e as mensagens de whatsapp das personagens. A leitura de Estudo sobre
o fim é densa, e muito fluida. E por incrível que pareça, diante de nada
menos que a tragédia nacional, há humor. É uma história envolvente.
A maior parte da narrativa ocorre na
cidade de São Paulo, o bangue-bangue à paulista é o salve-se-quem-puder que
desemboca no Brasil de hoje, mas que não é de forma alguma novidade para a
parte mais injustiçada e vulnerável da população brasileira: os pobres,
notadamente os pobres de pele negra. É contra os pobres que, após o Golpe de
2016, foi instituído um teto de gastos que não permite políticas públicas, é
contra eles que se fez a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência e as
privatizações. O resultado, ao contrário do argumento usado para ludibriá-los –
criar mais empregos – é a total precarização do mundo do trabalho, a uberização
que vem na esteira da perda dos direitos trabalhistas, e o crescimento
vertiginoso do mercado informal. Paula Fábrio nos apresenta ainda uma
novidade mais cruel: a terceirização da terceirização.
É assim que Magaiver e Alemoa
personificam o saber popular de que o mundo é dos espertos, de que em terra de
cego quem tem um olho é rei. Explorando meninos (bandidos, banidos) que
precisam furtar para sobreviver, eles mantêm uma empresa de interceptação de
bicicletas e celulares, tipo de negócio que explora a massa miserável dos
serviços de entrega. E é o próprio Magaiver que, instigado pelo discurso com
tendências de politização de Solange (Sol), começará a pensar em um movimento
organizado de entregadores de aplicativos. Pontes, nome que atravessa o livro,
um empresário envolto em mistério, desaparecido, que foi de camelô a ativista,
de político a empresário do coco, representa para quem ouve sua história uma
meritocracia que as elites insistem em dizer – a despeito dos fatos – que
existe. Os pobres de Estudo sobre o fim: bangue-bangue à paulista não se
identificam com os trabalhadores que são, mas com os empresários que querem
ser, identificam-se com o “empreendedorismo” como se fosse possível uma
sociedade constituída apenas de empresários.
Uma sombra do passado alcança todas as
páginas deste livro. É como se ele trouxesse a nata da história pregressa do
Brasil, que subjaz por trás de tudo. O que há por baixo é a ferida nacional
chamada escravidão; a outra, chamada latifúndio; a outra, chamada
patrimonialismo, todas elas envoltas em racismo. Não à toa, falando de sombra,
aparece Marc, um homem ligado à ditadura militar, o dono de uma empresa de
segurança cujo delírio é automação completa: “a tecnologia tira esse
problema da frente, o problema chamado pessoas”. Marc faz cerveja artesanal
e não parece mesmo gostar de pessoas, não as diferentes, nota-se pela forma
como se refere a Tânia, vigia das câmeras do prédio, portadora de
nanismo.
Munidas de seus celulares, as
personagens de Paula Fábrio nos mostram que essa facilidade tecnológica
também pode ampliar a confusão. Do uso excessivo e viciante ao repasse de fakenews
pelas redes sociais, o abuso do eletrônico instaura comportamentos. Há que se
falar também em novos modos de leitura: a preferência pela mensagem visual,
rápida, superficial – isso sobre uma população que nem adquiriu os modos de
leitura convencional, concentrada, crítica e/ou literária. A passagem em que
Magaiver entende uma mensagem de maneira contrária ao que ela significa ilustra
bem como a tecnologia tem encontrado solo fértil para confundir, não para
esclarecer, e nos lembra um episódio recente da história brasileira: durante a
greve dos caminhoneiros em setembro de 2021, a mensagem de voz por whatsapp
de Jair Bolsonaro enviada a eles despertou a desconfiança de ser falsa,
enquanto muitos caminhoneiros, seus apoiadores, acreditaram que a mensagem de
voz do comediante Marcelo Adnet, se passando pelo presidente e
solicitando que dançassem a “Macarena”, era verdadeira.
Estudo sobre o fim não deixa dúvidas sobre o efeito coletivo das ações individuais, à
medida que as personagens, aparentemente isoladas, se cruzam. Há nesses
cruzamentos um outro mérito na estrutura, o ritmo de movimento, os
deslocamentos que a autora nos informa nas cidades de São Paulo e João Pessoa,
sinalizados nas seções em que se divide o livro: Vila Mariana-Vila Prudente/
Tambaú-Coqueirinho/ Vila Mariana-Vila Prudente-Vila Mariana. A cidade de São
Paulo, assim, aparece com suas classes sociais, os lugares funcionando como
organismos vivos, pois a forma como pulsa a cidade só se dá por causa das
pessoas. Um país é feito de pessoas. Na outra ponta, no Nordeste, a Professora
(também conhecida pelos moradores do seu prédio como a síndica sapatão),
personagem que é um importante elo na narrativa, descreve a sua viagem a
algumas praias de João Pessoa, em um celta vermelho dirigido por um motorista
de aplicativo, e mostra – pela fala do motorista – o Brasil de 2016
chocando o ovo da serpente, prestes a trincar. Quando trincar, cinquenta e sete
milhões de brasileiros elegerão um presidente de orientação fascista. São dessa
professora as reflexões sobre o momento político, como se ela percebesse, mas
ainda não tivesse a dimensão exata, algo como um sentimento de suspeita que já
se instalava: “(...) eu voltaria a encarar o futuro com jeito de passado, mal-passado.”
Se é a partir do furto das bicicletas
que conhecemos a precariedade em que os meninos Costela, Conexão e Sócrates se
encontram, é a partir da reunião no condomínio de classe média que constatamos
o nível de intolerância e ódio de classe em patamares extraordinários – tudo
está por um fio – a vida do outro não tem mais valor. É ali que vai se
manifestar o reacionarismo diante de grupos que exigem ser tratados com respeito
e por isso exigem novas palavras. A exigência do “politicamente correto” causa
revolta porque além do desejo de matar os diferentes (leia-se aqui população de
mulheres, indígenas, negros, LGBTQI+, portadores de necessidades especiais),
desejo que ao longo da história brasileira foi e é tantas vezes saciado, há a
prática de destruir os diferentes com as palavras, de humilhá-los – e esses
outros, os diferentes, devem suportar as palavras daqueles que se entendem como
superiores, frequentadores do mundo dos iguais. Para os pretensos superiores,
diferente é sinônimo de inferior. É assim que, na reunião, a voz narrativa nos
deixa ouvir em alto e bom som este pensamento: “Ah, quando pudessem voltar a
dizer certas coisas. Anseiam por se juntar aos radicais, àqueles menos
contidos, mas eles ainda têm vergonha.”
Com uma participação reduzida, apenas
5% dos moradores, a reunião mostra o tamanho da cultura participativa – a
apatia política e a desvalorização da vida comunitária. Já a vida online, conta
com o entusiasmo de cidadãos ativos em rede, além de um exército de robôs que
não cessa. Um momento de clareza sobre o avanço de uma cultura fascista se
apresenta nas páginas em que a autora utiliza comentários de internet em
notícias como a da “Invasão do Capitólio, nos EUA”.
Há uma organicidade muito grande em Estudo
sobre o fim: bangue-bangue à paulista. Como um oroboro, o fim se une ao
começo e o começo ao fim. Em qualquer ordem, podemos voltar ao motorista de aplicativo
manifestando seu desprezo pelos pobres, pelos nativos e seu deslumbre diante do
explorador; sua aversão ao Partido dos Trabalhadores, as frases diretas
que ele profere, entregando sua visão de mundo: “O certo é que ninguém pode
tomar o espaço de ninguém. Rico é rico e pobre é pobre. E bandido é bandido.
Também não é correto tomar dinheiro do pobre, trabalhador, ambulante que ganha
pouco, embora ambulante também seja bandido (...).”
Nesta ordem social em que a palavra
bandido se amplia para nominar os excluídos, não poderia faltar o papel das
igrejas, especialmente as neopentecostais, que sabem tão bem explorar, assim
como Alemoa e Magaiver, a miséria ao seu redor dando desculpas de nobreza.
Alemoa e Magaiver são a única salvação econômica de muita gente. “Vinte
reais por bike”. As igrejas exploram oferecendo salvação espiritual. A
diferença é que Magaiver e Alemoa, pelo menos, entregam o que prometem. Sem
justiça social de distribuição de renda e sem políticas públicas eficientes e
humanitárias de saúde mental as igrejas proliferam. A “novilíngua” do
clássico 1984, de George Orwell, se apresenta nitidamente no nome
da igreja evangélica em uma ocupação popular para moradia: Igreja do Brasil
do Futuro. Denominação que subentende o sonho de uma teocracia e lembra o slogan
“Uma ponte para o futuro” do governo de Michel Temer,
feito de retrocessos. Em Estudo sobre o fim, Zé Eulálio estuda para ser
pastor, lê as apostilas do pastor Deoclécio e vê na criação de uma filial
grande oportunidade. Também é esperto o suficiente para saber que igreja no
Brasil é um negócio concorrido; assim, busca, na sua performance, aprender
técnicas do jornalismo policial mais baixo que existe, protagonizado por
datenas e afins. O diabo será mais uma vez deslocado para as religiões de
matriz africana.
Na caracterização complexa das personagens
de Paula Fábrio, as línguas são diferentes. O bangue-bangue se dá numa
espécie de Babel. Talvez por isso Magaiver e Sol não possam se entender, mesmo
tentando. Nos encontros com a Professora, Sol nos mostra que as ideias podem
ser contaminadas umas pelas outras. Sol é mesmo essa pequena e rara luz se
insinuando em alguma fresta, misturando ideias de cooperativismo com o sonho de
fazer parte de um grupo funk. De alguma forma, essa personagem representa o
poder das palavras. Ela é uma contadora de história e sabe: “Muitas vezes,
ao contar uma história para o Magaiver, ao ouvir sua própria voz, Sol parece
entender o real sentido daquilo que está narrando”.
Estudo sobre o fim: bangue-bangue à
paulista é um livro que destaca as decisões que acontecem
dentro do Edifício Iracema (sim, o da virgem dos lábios de mel que morre de
saudades de seu colonizador – afinal não foi a indígena que contou essa
história); um pequeno país que retrata o grande, este que agoniza socialmente.
É o estudo sobre o fim da consciência de classe, o fim dos sonhos coletivos, o
fim da capacidade de se integrar como categoria trabalhadora e lutar por ela. É
também uma pequena galeria de pessoas que podemos encontrar por aí todo dia,
cada vez mais.
Muitas dessas personagens de Paula
Fábrio nos surpreendem por alguma característica que não combina com a
noção que fazemos delas, são humanas, demasiadamente humanas e, portanto,
possuem suas incoerências, para o bem e para o mal, algozes e vítimas que se
misturam dentro de si. Em algumas, como Marc, podemos encontrar o que chamamos
correntemente de “um combo”: machista, fascista, homofóbico, racista,
capacitista. Eles existem e já não se escondem.
No prefácio do cientista político Jairo
Nicolau ao livro Como as democracias morrem, de Levitsky e Ziblatt,
ele nos alerta que a “tolerância mútua é reconhecer que os rivais, caso
joguem pelas regras institucionais, têm o mesmo direito de existir, competir
pelo poder e governar. A reserva institucional significa evitar as ações que,
embora respeitem a letra da lei, violam claramente seu espírito. Portanto, para
além do texto da Constituição, uma democracia necessitaria de líderes que
conheçam e respeitem as regras informais.” No Brasil atual, do qual Estudo
sobre o fim fala, a democracia está completamente abalada. Não só a
tolerância institucional foi rompida com a prisão do principal candidato à
Presidência da República, Luís Inácio Lula da Silva, utilizando o
recurso abominável do “lawfare”, executado por um Juiz de Direito
chamado Sérgio Moro – em conluio com membros do Ministério
Público – como a reserva institucional foi rompida a partir da
utilização do recurso de impeachment para efetuar um golpe. Porém, algo
concomitante a esses processos acontece com os indivíduos de uma democracia em
erosão. É esse algo que a autora de forma literária e tão bem
articulada consegue apontar. Aquela pergunta “como foi que chegamos aqui” é o
que ela responde.
Paula Fábrio nos entrega um livro que faz rir e chorar de nossas mazelas, que
dialoga o tempo todo com a realidade e nosso tempo; leva-nos até o ponto mais
alto da tensão deste triste fenômeno que jura de morte a democracia brasileira:
a violência estatal, social, econômica e política voltada principalmente para
nossos mais vulneráveis banidos: a criança de pele negra.
“A mulher acaba de sair do prédio. É
professora. Tem certa idade. Não carrega nenhuma bolsa consigo, a não ser a dos
olhos.
Na rua, ainda há respingos d’água nos
galhos das árvores e na fiação elétrica. Mesmo assim, a mulher leva o
guarda-chuva aberto sobre a cabeça. O guarda-chuva a impede de cruzar o olhar
com o do menino, e isso pode ser um lance de sorte para ambos. No entanto, ela
lê os dizeres em sua camiseta: “Jesus tem planos para você.” (p. 11)
***
Estudo sobre o fim: bangue-bangue à
paulista
Paula Fábrio
Romance
Reformatório
2022
Paula Fábrio - Nasceu em São Paulo, onde mora. É doutora em Literatura pela USP. Autora de Desnorteio (de 2012), romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, e Um dia toparei comigo (de 2015), livro finalista do mesmo prêmio. No corredor dos cobogós (2019, Edições SM) e Estudo sobre o fim: bangue-bangue à paulista (2022, Editora Reformatório).
Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura 2013, ed. Biblioteca do Paraná), O nome do mundo (ed. Armazém da Cultura, 2014), Só, com peixes (ed. Confraria do Vento, 2015), Embrulhado para viagem (col. Leve um Livro, 2016), Garrafas ao mar (ed. Penalux, 2018), Arraial do Curral del Rei – a desmemória dos bois (ed. Conceito Editorial, 2019), Eva-proto-poeta, ed. Caos & Letras, 2020 e Estive no fim do mundo e lembrei de você (Editora Peirópolis).