por
Anthony Almeida__
Foto: Anthony Almeida |
Chego do oeste paulista e
embarco no metrô vermelho. Amanheceu faz pouco e, quando desembarco, um cênico
me ocorre. Não deu nem uma hora de cidade de São Paulo e a metrópole já me
grasna o seu ímpeto. Antes que se complete essa primeira hora, ouço um sabiá,
meu primeiro sabiá, vejam vocês, numa das árvores vizinhas duma estação do
metrô.
Jamais pensei que meu
encontro com o passarinho, símbolo da crônica brasileira, fosse ocorrer num ambiente
tão densamente urbanizado. Os sabiás são mestres na arte da surpresa e do
encanto. Encantado fico e a beleza do canto do sabiá é o primeiro sabor da
minha chegada. É o primeiro, mas não é o único. Sampa não é um lugar de
experiências unitárias.
Na estação, embaixo do
viaduto do Minhocão, vejo também um ninho de pomba, ela cuida de seus dois
filhotes num beiral de viga. Pombos são pássaros citadinos, diferente do canto
do sabiá, não há nada de especial no encontro dos olhos de recém-chegados com o
arrulhar e os reflexos da ave. De onde venho, sem dúvidas, há pombos – lembro,
inclusive, do mergulho de dois deles.
Eu dobrava uma esquina da
Tiradentes, uma das poucas avenidas com semáforos na cidade, e um caminhoneiro
de caçamba freou a sua curva. Parei minha caminhada e fui ver o motivo do
barulho e do breque. Dois pombos, um cinza e um malhado, se banhavam na rua,
mergulhavam numa poça, formada pela água que escorria da lavagem da calçada que
vinha duma loja de esquina.
O motorista sorriu amarelo,
mas largo. Eu admirei seu gesto e sorri mais largo ainda. O bufado do motor da
caçamba e o canto da borracha dos seus pneus assustaram e tangeram as pombas do
seu banho. Mas bastou que o semáforo avermelhasse para que o par voltasse à sua
piscina.
A pomba paulistana cuida de
seus pombinhos tão atenciosa e amável que tenho certeza de que, em poucos
meses, serão seus passarinhos os protagonistas de outras poças e mergulhos.
Resta saber se os caçambeiros da metrópole têm a mesma sensibilidade, e a mesma
largura de sorriso, do motorista interiorano. Outra certeza me cobre, prefiro,
entretanto, não pensar nela. Mas, não adianta, chegar em Sampa é confrontar os
próprios pensamentos.
A estação do metrô, dos
sabiás e dos pombos é integrada a um terminal de ônibus urbanos. Daqui chegam e
partem caminhões de passageiros. Embarcam, desembarcam e, eventualmente,
evacuam. Meu ônibus intermunicipal viajou mais de 600 quilômetros, desembarquei
e desejo evacuar, naturalmente. Vou ao banheiro integrado em busca do alívio urinário
e encontro mais um pássaro urbano, metropolitano.
O sanitário do terminal tem
o cheiro ardido dos banheiros de rodoviária. Nele, vejo uma rola e o seu dono
sentado, nu, em um dos vasos do cubículo sem porta. Pelos e unhas crescidos,
sujos de miséria, cobrem sua vaidade. Certamente o homem dormiu debaixo do
viaduto e aproveitou a abertura do terminal, e de seu banheiro, para usar a
privada. Não quis, pelo menos desta vez, evacuar em qualquer canto das ruas
paulistanas. Quis a privacidade, mas a falta de porta o impediu e aqui estou,
perturbado e resignado.
O homem gorjeia alguma
coisa e entendo que é um "tem gente". Sim, tem, e ele não é o único.
Há outros humanos-mendigos nas dependências sanitárias, usam todos os cubículos
e mictórios. Tentam, no mijar, no cagar, no uso do raro papel higiênico e no
lavar de mãos, a dignidade e a privacidade de se ter acesso a um banheiro,
ainda que público. Deixo ele, eles em paz. Meu mijo seguirá comigo e o
despejarei em outra latrina paulistana qualquer.
Abandono o terminal e mais
uma ave da metrópole me atordoa. É o estrondo de um helicóptero que rasga o
fosco do céu. Olho para o estardalhaço, confiro meu relógio. Agora, sim, deu
uma hora de cidade de São Paulo.
São Paulo. Julho, 2022.
Anthony Almeida é professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP, onde leciona. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. Atualmente é cronista do Jornal Tribuna Livre e da Revista Mirada. É doutorando em Geografia, pela UFPE, editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica, e colecionador de cartões-postais. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com