Cinco poemas do livro Arame Farpado, de Lisa Alves

 por Lisa Alves__




[ecos]

 

o eu original foi desconectado

e tudo o que restou fomos nós (esses eus sem paradigmas),

no escuro de uma tabela periódica,

crédulos da ciência e dos teísmos,

cultivadores de rótulos, diplomas e de imóveis habitações.



[almagene]

 

viaja a criança-tempo

ao redor das minhas tradições

abarca célere e tola

profere mistérios além

do universo humano

indica vias com a astúcia

de um ente natural

 

fogo, sombras, cavernas,

espadas de ossos, duelos pela vida,

fibra óptica, genoma e nanotipos

 

a existência se alarga

na substância do tempo:

 

ontem significávamos

guerra por fogo

amanhã mataremos

por um trago d’água

e nos regaremos em areia

 

serei sereia

ou uma ideia

traçada nas redes

de cybers pescadores?

 

[tirocínios líquidos para elisa]

 in memoriam de Alfonsina Storni e Virginia Woolf

 

 

II

 

você recorda?

do monstro de 1981,

aquele que arrastou suas miúdas pernas

para o fundo de um tanque lamacento?

 

era o seu criador.

 


[censura]

 

não possuía escapes – lacraram todos os orifícios de evasão

as flores de dentro tornaram-se rudes e secas

até o ar ficara denso

nem regalia de afundar-se ao chão

nem michas por debaixo das portas (portas?)

nem correio, nem leiteiro, nem vozes (veludas vozes)

nem sirenes e nem a cantiga do bem-te-vi

ela era toda silêncio.

 


 [lagartixa]

 

nasceu recortada

um membro para cada ponto cardeal

na quinta estação ela se juntava

bem longe dos olhos da humanidade

e daqueles seres colossais do laboratório

 

sina de ceder o rabo em qualquer encruzilhada

 

perdida, sozinha,

embrulhada no estômago arruinado da civilização

sobrevivente do deserto, da neve, da fome

e da matilha de michês

 

na face

uma maquiagem bailava desfeita

dos olhos à boca

as pernas desgrenhadas

 eram carregadas pelo gene da sobrevivência

 

se tinha deus era o diabo

se tinha fé era na própria desgraça

 

cindy chupeta, valkiria valadão,

veruska bombom, victoria house

 

lagartixas trucidadas

(noticiou o jornal).




Lisa Alves (1981) é escritora e vídeo artista. Em 2015, publicou o livro de poesia “Arame Farpado” que ganhou uma segunda edição pela Penalux em 2018. Trabalha a sua poética em uma modalidade artística híbrida: imagem, performance, texto e som. Em 2020/2021 publicou as plaquetes “Quando tudo for possível” um híbrido homo-onírico-afetivo de poesia e vídeo-arte que em breve se tornará livro pelo selo Mirada. É redatora da revista literária La Ninfa Eco (Oxford, UK).