por Taciana Oliveira__
Foto: Levi Meir Clancy |
CANTIGA DE MALAZARTE
Eu sou o olhar que penetra nas
camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo
os sonhos.
Não desprezo nada que tenha
visto,
todas as coisas se gravam pra
sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos
sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na
terra,
tiro os cheiros dos corpos das
meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus
passos,
e ando nos quatro cantos da
vida.
Consolo o herói vagabundo,
glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque
sou o amor,
tenho me surpreendido a
cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à
Criação
e que bole em todas as almas
que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe
como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do
mundo.
REFLEXÃO N°.1
Ninguém sonha duas vezes o
mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no
mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma
mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento
infinito.
Ainda não estamos habituados
com o mundo
Nascer é muito comprido.
MAPA
Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo
desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos
sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São
Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando,
sou um fluído,
depois, chego à consciência da
terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única
vida.
Colégio. Indignado, me chamam
pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem,
vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui,
estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de
ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais,
não sei bem o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da
baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de
movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma
técnica.
Estou com os meus antepassados,
me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes
pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios
doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando
os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo,
daqui a cem anos, levantando populações...
Onde esconder a minha cara? O
mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite,
mulheres andando,
presságios brotando no ar,
diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido
verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos
e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do
corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes,
dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de
amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade
suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos,
beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar,
abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos
do mundo.
Almas desesperadas eu vos amo.
Almas insatisfeitas, ardentes,
Detesto os que se tapeiam,
os que brincam de cabra-cega
com a vida, os homens "práticos"...
Viva São Francisco e vários
suicidas e amantes suicidas,
os soldados que perderam a
batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos
bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou
porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
viva eu, que inauguro no mundo
o estado de bagunça transcedente.
Sou a presa do homem que fui há
vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes,
desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do
poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos
amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia
de Botafogo,
no pensamento dos homens que
movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama
com dois olhos andando,
sempre em transformação.