Viajando com Machado | Valdocir Trevisan

por Valdocir Trevisan__




Não sou crítico literário, mas em minha modesta opinião, Machado de Assis e Lima Barreto estão no ápice da nossa literatura do século passado. Machado sempre traz novidades e desta vez o novo chegou quando revirava minhas pilhas de Superinteressantes, Planeta, MAD, Aventuras na História e a Literatura de agosto/setembro (2017).

 

Viajei com Brás Cubas e imaginei que o personagem teria, não sei se é essa a palavra certa, "direitos" de falar sobre o que quiser, sem nenhuma preocupação moral, afinal é um morto autor e não um autor defunto... Se o morto não está no mundo, então não tem sofrimentos existenciais, não é mesmo? Nem preocupação com a moral. Pode escrever, denunciar, criticar, elogiar e amassar com a certeza da impunidade. Nenhuma resposta ou atitude oposta vai trazer danos.


 Nada. Nadinha.

 

Convenhamos, quem não iria gostar de soltar verbos na cara dos desafetos, daquele que um dia te magoou ou daquele chefe que está sempre gritando, enfim, de qualquer um.

 

Soltar a minha voz...

 

De certa forma, Brás Cubas resvala nesses devaneios, mas poderia gritar muito, mas muito mais. Como escreveu Roberto Sarmento Lima no referido texto, a consciência de Cubas "é livre de culpas e tormentos". Não interessa se sou Esaú ou Jacó, monarquista ou liberal, vou demonizar todo mundo, ah, coisa boa, vou gritar e xingar todos, todos são humanos, ora, e eu não...sou um autor defunto, ou melhor, um defunto autor.

 

Situações que Machado deflagra são atemporais, pois quando Brás Cubas está moribundo, "vê" homens da idade da pedra, romanos, robôs e rinocerontes voadores. Que viagem! Também quero, ops, vou querer quando for moribundo.

 

Enquanto isso, as viagens reais e imaginárias machadianas prosseguem. Imagine saber de uma irmã apenas na abertura do testamento do velho pai, quando o falecido exige que a "novidade" vá morar com seu irmão e uma tia no casarão da família! Que situação peculiar, pois essa é "Helena", penúltimo romance de Machado.

 

Imagine a situação: de repente uma irmã que você nem tinha conhecimento, vem residir em sua casa. Coisas de filme, da vida, de Machado de Assis. Um novo contexto humano no seio familiar. Tudo está aberto, tudo pode acontecer. Novos amores ou ódios demoníacos. Vida ou morte. Até nesse quesito o bruxo do Cosme Velho é original, deixa o leitor decidir se Capitu traiu ou não e quem decide o futuro do personagem é o leitor.

 

Mesmo que o Conselheiro Aires deixe Machado escrever à vontade, afinal o Conselheiro só observa e não toma nenhuma atitude. E a Guiomar que também fica só observando seus três pretendentes, ainda que suas luvas tenham preferências.

 

Luvas que podem cobrir mãos angelicais como mãos doentes e gananciosas. Luvas que querem apenas tempo para saber com quem Guiomar vai formar sua família. Diante dos três concorrentes, ela está em dúvida entre matrimônio ou patrimônio.

 

Redundância exposta.

 

E seguimos nossa jornada machadiana, apesar da dúvida de Guiomar, ora, entre amor e dinheiro. O amor em primeiro lugar, né pessoal? Mas sabem como é, um apartamento de frente para o mar, uma bela fazenda... Em seu curioso livro, "História Bizarra da literatura Brasileira", Marcel Verrumo cita o conto O Anjo Rafael, onde Machado comprova ser um visionário. Nele encontramos um idoso que mora com a filha de 15 anos. Isolados numa fazenda, o velho afirma que é um anjo. A menina acredita, pois nunca saiu de casa e não conhece o mundo "lá fora". Então ela assume a loucura do pai e só descobre a verdade depois da morte do velho quando precisa se mudar para uma cidade mais próxima. O transtorno passa ser conhecido pela psiquiatria quase cem anos depois com o nome de "folie à deux" (loucura a dois).

 

Era mesmo um bruxo esse gênio da nossa literatura, revelando a psique humana nas ruas do Rio de Janeiro do Século IXX.

 

E quando traído, ou não, Bentinho envelhece, percebe que seu fim era atar as duas pontas da sua vida, para restaurar no fim, sua adolescência.


Não preciso dizer que se trata de um autor defunto de leitura obrigatória.




Valdocir Trevisan
 é gaúcho, gremista e jornalista. Autor do livro de crônicas Violências Culturais (Editora Memorabilia, 2022) Para acessar seu blog: clica aqui