por Anthony Almeida__
Todos os caminhos que trilhei na vida, depois da amizade construída com
Céu, tiveram como bússola o chão que Céu construiu para si. Antes de ter o céu
em seu nome, ela se chamava Marcelo. Nossos caminhos foram paralelos nessa
época. Adolescente, Marcelo esboçava sua primeira literatura. Eu também. Escrevemos
um capítulo de novela a quatro mãos: Aquiles Mosca era o protagonista. A trama
de Mosca ficou só num capítulo mesmo; as nossas, não.
Adulta, Marcelo decidiu que deveria morar perto do mar, que deveria
experimentar do oceano e, com suas águas, lavar, salgar o horizonte dos seus
sonhos. Sonhos de alcançar o horizonte, de ser mar e céu ao mesmo tempo. Para
isso, construiu seu chão, saiu do planalto, da caatinga, foi para perto do mar.
Foi estudar na universidade pública, trilhou o caminho da assistência
estudantil e fez sua primeira moradia litorânea na Casa do Estudante
Universitário (CEU), apesar de ser universitária. A casa, mesmo que já fosse no
Recife, mesmo que CEU, ainda era longe do mar, do seu encontro com o céu. Então,
logo que conseguiu, tirou pai e irmão da caatinga, os levou para um bairro mais
perto do mar, mais mar, o olindense Jardim Atlântico.
Eu, ainda na caatinga, teria dias recifenses, numa capacitação do serviço.
Disse-lhe, ela me acolheu em sua Olinda. Além da hospedagem, fui apresentado
aos lugares recife-olindenses que depois tornei meus. Conheci a universidade, a
CEU e a possibilidade de fazê-la também a minha casa, o centro histórico de
Olinda, o Recife Antigo. Vimos o Rio Capibaribe, o mangue, cantamos Manguebeat,
costuramos ruas de RecifOlinda dentro do infindável Rio Doce/CDU, ônibus que
nos levava do Jardim Atlântico até a Cidade Universitária em duas horas e meia
de percurso.
Voltei à caatinga. Sabia, porém, que queria viver perto do mar, viver a
universidade, o Recife. Um ano depois, orientei meu caminho pelo seu exemplo.
Fui morar no quarto 113 da CEU. É engraçado, de um sorriso triste, não termos convivido
daí para a frente, apesar de estarmos no mesmo campus e na mesma região
metropolitana. Um campus é universo e uma metrópole é inesgotável. Esses dois
gigantismos justificam os desencontros, mas não atenuam a distância e o
desalento que me causa saber que podíamos ter tido a convivência da amizade.
Mesmo assim, longe, mantive seu exemplo como bússola, oriente distante onde o
sol nasce e mostra o caminho.
Numa de nossas poucas conversas, na saída do prédio em que estudamos –
outro desencontro quase inaceitável, esse de estudarmos no mesmo prédio –,
admirei seus cabelos cacheados e crescentes. Um tecido envolvia parte de seus
cachos e eu achei bonito. Intercalo meus cabelos entre longos e curtos, quis
aprender como usar o acessório. Ela foi singela ao dizer que não fazia nada
demais, só enrolava um pano e pronto. Simples. Nesse dia, soube que sua
graduação em psicologia havia sido concluída e que ela havia ingressado num curso
de mestrado.
– Que massa! Eu tô na graduação, mas quero mestrado. Qual teu tema de
pesquisa?
– É sobre sexualidade.
Comentou superficialmente sobre suas questões metodológicas e nos
despedimos. A sua fala, propositalmente superficial, foi conduzida por uma
retórica deslizante, entre o esquivo e o tangencial. Interrogações surgiram em
minhas sobrancelhas, depois cederam à admiração. Apreciei o seu mestrado, a
continuação do caminho da educação, uma realidade para ela; para a gente.
Hoje, oito anos depois daquele dia, último presencial, entendo a interrogação.
Seu tema de pesquisa era a transexualidade e as questões relacionadas ao nome
social, uma “pesquisa-intervenção em psicologia e o processo de implementação
de políticas para pessoas trans*”. Ali, ainda a chamei pelo masculino, aquela
que eu via era o meu amigo Marcelo. É provável que, naquela época, eu não
entendesse sobre transexualidade, nem mesmo transição. Não duvido que, talvez, eu
fosse preconceituoso, caso Marcéu se aprofundasse em maiores explicações. Marcéu
se protegeu com seu discurso enquanto vivenciava a sua transição.
O pano enrolado nos seus cachos crescentes era parte da construção da
sua identidade, do seu degradê de vida. Marcéu parecia um apelido aos menos
chegados – outro sorriso triste me ocorre, eu achava que fosse apelido –, mas
era parte de sua luta para tornar-se Céu. Marcéu era mar e céu ao mesmo tempo.
Sempre foi. Os seus pronomes é que talvez ainda não fossem claros ao meu
desconhecimento. Seria ele, ela, elu, elx, el@? Não sei se eu saberia lidar com
isso. Marcéu sabia. Foi superficial, se poupou e me poupou do constrangimento, do
desentendimento, preservou nossa amizade distante. Para mim, ficou a admiração daquele
dia, hoje a admiração é encantamento.
Enquanto Marcéu conquistava seu título de mestra e, com seu trabalho
acadêmico e político, tornava o nome social um direito na universidade – sim, ela
é uma das coautoras da portaria do nome social na universidade –, eu tomei o
seu exemplo e resolvi dar um passo em direção similar. Encarei um mestrado longe
da caatinga e do mar. Vim para o Sudeste, o oeste de São Paulo, onde não há
mar. Mudei meu chão, segui o exemplo de Céu. Seu nome social saiu no diploma de
mestra. Sairá também no seu diploma de doutora, dentro de alguns meses.
No mestrado, tive meus aprendizados e convivências. Li sobre escrita, crônica
e seu misto entre jornalismo e literatura, virei cronista. Li crônicas e
reportagens sobre transexualidade. Li as reflexões que Céu fazia do Rio de
Janeiro, onde escolheu tornar-se doutora. Entendi as interrogações, compreendi a
continuação da escrita conosco. Sugeri-a, via redes sociais, que fizesse as
reflexões em crônicas, comentei sua prosa charmosa, contundente, sua voz como boa
nova à crônica brasileira... Ela agradeceu e resignou-se. Escreveu umas duas,
numa fui personagem, isso é um orgulho literário que levo com carinho, mas
seguiu em seus textos científicos e políticos.
Papeamos sobre seu doutorado e suas conquistas. Mensagens de texto,
áudios, admiração. Eu já sabia dos seus pronomes e estava contente por chamá-la
de ela, de ser seu amigo, um dos pouquíssimos do tempo da escola e de antes da
sua transição. Estava contente de ter uma amiga doutoranda. Ela irradiava
alegria por suas conquistas e por fazer a universidade, a vida acadêmica, um
caminho de pontes para a vivência e a existência, exalava esperança. Mostrava e
construía um mundo, um universo possível para si, para seus sonhos. Fiquei
encantado. Céu, beleza imensa.
Eu enfrentei desafios no meu percurso, quase desisti dele. As pontes que
sonhei, não consegui. As portas que encontrei, geralmente, estavam fechadas.
Fechei-me também. Mergulhei na minha psique e só depois de processos e
processos decidi me orientar. Os caminhos que Céu percorreu, outra vez, me
foram bússola e voltei a sonhar com a construção de pontes, ingressei no
doutorado. Escrevo a menos de dez dias da minha volta ao Recife. Seguirei minha
jornada pertinho do mar e com o exemplo da Céu em meu caminho. Obrigado por me
ajudar a voltar a sonhar, a ser exemplo e bússola para mim, a ser horizonte e Céu.
Continue construindo seu céu aberto, incansável e muito bonito. Tô aqui, vendo
de longe, aprendendo como fazer, te vendo ser.
Presidente
Venceslau. Julho, 2022.
Anthony Almeida é professor, cronista e cartofilista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. É cronista do Jornal Tribuna Livre, da Revista Mirada, doutorando em Geografia, pela UFPE, e editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com