por Pedro Américo de Farias __
E
se Deus for um de nós.
Romance. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2016.
Ando atrasado com minhas leituras de literatura contemporânea. Advirto que meu conceito de contemporâneo não bate com o da maioria. E o de maioria também não bate com o da maioria. E não estou preocupado em debater tais diferenças, menos ainda em explicá-las. De resto são inexplicáveis. Fico satisfeito com breve definição de antiga semântica, segundo a qual “contemporâneo-a é o que existe ou existiu no mesmo tempo ou época”. Por aqui chego à apreciação da leitura que acabei de fazer do romance E se Deus for um de nós, de Tadeu Sarmento, contemporâneo de agora, da mesma forma como Graciliano Ramos foi um autor contemporâneo de José Lins do Rego. Escritor de hoje que se preza, como Tadeu Sarmento, amplia a sua, a nossa contemporaneidade, torna-se contemporâneo de James Joyce em 1920 e de Cervantes em 1605. A propósito, Mario Vargas Llosa, no texto “Una novela para el siglo XXI”, que apresenta a edição do quarto centenário de Don Quijote de la Mancha, afirma:
Aunque no lo sepan, los
novelistas contemporáneos que juegan con la forma, distorcionan el tiempo,
barajan y enredan los puntos de vista y experimentan con el lenguaje, son todos deudores de Cervantes.
Tadeu Sarmento começa com uma fantástica epígrafe colhida no Genesis (5-6):
Viu o Senhor que a maldade do
homem se havia multiplicado na Terra e que era continuamente mau todo o
desígnio do seu coração; então se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na
Terra.
Teria, então, começado a esculhambação da
humanidade a partir de um erro de cálculo na obra do Criador? Mau escultor ou
uso de material de terceira qualidade? Tal questão não está posta pelo autor,
nestes termos, mas poderia estar. Longa história, boa discussão. Romance quase
irlandês, meio Joyce, um quarto de Beckett, atravessa a ficção científica e a
policial, a simbolista e a naturalista, a poesia cubo-futurista russa, um dedo
de prosa com Kurt Vonnegut, Raymond Chandler, Nietzsche, Van Gogh,
Schopenhauer, Khlébnikov, Maiakovski, Marco Pólo, Rimbaud, Conrad, Melville,
Marx, Hitler, Miguel Serrano (hitlerista exotérico chileno, que li faz umas
décadas), Bolaño, Yeats, Rasputin, Mario Puzo, Hemingway, Mark Chapman e sua
sagrada vítima John Lennon, Sean Connery/Tom Cavanagh, Sean O'Casey, Tom Waits
dublando a voz de Deus, o gypsy roqueiro-cineasta Kusturica, o maniqueu Santo
Agostinho, os revolucionários pioneiros do IRA (Exército Republicano Irlandês,
hoje abrigado no Sinn Féin) e todas as formas de criminalidade do tráfico de
crianças e mulheres até a escravização dos trabalhadores e o genocídio dos indígenas,
negros e pobres nas periferias do mundo.
Dá para ver, nas 382 páginas deste
romance de Sarmento, uma gigantesca suruba temática. Aos olhos de leitores
ansiosos por enredos bem amarrados, passa a sensação de desperdício de tempo.
Ao contrário, para quem tem a paciência de curtir uma narrativa solta,
peregrina, fica a busca de sensações que a realidade violenta do mundo
capitalista e sua brutal narco-anárquica-esquisoparanoia inspira aos artistas
de todas as linguagens, desde tempos imemoriais, chegando ao mundo moderno, em que
tudo é permitido, já que Deus está morto e quem o matou pouco importa.
Romance, cuja porta de entrada o leitor
abre facilmente. Entra e vai tentando seguir uma rota que leve ao esperado
clímax e ao epílogo previsível ou imprevisível. Angustia-se, mas continua
esperando. Até que, no último capítulo, sem que o enredo se feche, recebe a
chave de saída, que o misterioso narrador protagonista lhe oferece:
Pois não estamos escrevendo
ficção. Tudo o que descrevemos aqui aconteceu, só que mais ou menos. Mas mais
para mais que para menos, segundo a escola Kurt Vonnegut para picaretagem e
piano. O problema é que tudo que aconteceu tem um tempo e memorizar, no limite,
é de fato polir. A imaginação é uma memória polida, aparada em suas arestas,
pronta para ser recontada. E se conto em um livro longo é porque não tive tempo
suficiente para escrever um curto. Pois cortar exige mais trabalho que encher
linguiça. Enchendo linguiça escondemos melhor os defeitos do texto... De qualquer
modo, essa história ficou longa, mas não por ter sido alongada. É que a vida é
mesmo bela, longa e acidental...
Tadeu Sarmento não brinca em serviço. Diz
que não se preocupa com a arte de escrever. Não seria, neste sentido, um poeta,
recriador de linguagens. Mas o leitor e a leitora prestem bem atenção. Admita
ou não, há um espírito de poeta que baixa neste prosador, enquanto ele conta,
emenda e embaralha histórias, desarrumando enredos, construindo frases de fazer
inveja a frasistas do naipe de Tom Jobim e Nelson Rodrigues. Sublinhei, ao
longo do livro, algumas dezenas de preciosas construções carregadas de ironia e
de inusitado sabor semântico-sintático, portanto poético. Não as transcrevo.
Cada um/a tenha o trabalho e o seu prazer de encontrá-las.
Belo Horizonte, 06/07/2022
Pedro Américo de Farias é pernambucano, mora em São João del Rei – MG. Licenciado em Letras, escreve poesia e prosa crítica e ficcional. Foi gestor na Fundação de Cultura Cidade do Recife, onde criou, entre outros, o projeto do festival A Letra e a Voz. Integrou o Conselho Editorial da Cia. Editora de Pernambuco – Cepe. Publicou: Coisas: poemas etc (Linguaraz Editor, 2015); Ficção em Pernambuco – breve história (c/ Cristhiano Aguiar, 2013); Viagem de Joseph Língua (romance; Ateliê, 2009); Par ímpar (c/ Wilson Araújo de Sousa, 2009); Linguaraz (audiopoemas, 2009).