por Eltânia André__
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Nesta terra dividida pelas águas, na
cidade morosa, os moradores de sentinela só encontram refresco na vida
desgastada dos outros. Línguas de trapo, mexeriqueiros, vigilantes da moral,
sempre à disposição para incendiar o que poderia retornar à calmaria ou
adormecer, pois, a meu ver, não têm condições psicológicas de carregarem suas
vias-crúcis de olhos voltados para os próprios umbigos. Pirapetinga e Santo
Antônio de Pádua, irmãs siamesas, inferno dantesco. Parece que se deu aqui a
queda do belíssimo anjo. A pantera, o leão e a loba andam livremente, não há
portas ou cadeados fortes o suficiente, a vida alheia na berlinda, espreitam
pelo buraco da fechadura, pelas redes sociais, pelas venezianas, e até do alto
dos morros. Coitado do mano, não sabe se defender, vive refém do
disse-me-disse, da especulação, da gozação, dos chistes e da fome pelo
espetáculo – e de preferência que seja trágico.
Fico revoltada. Ó, povão bocoió que
ainda lida com cupim ruminando a madeira, com a barriga vazia, peleja com
brotoejas e ronqueiras na caixa do peito, com quebranto, picumãs, e ainda chama
mulher de adúltera e homem de autoridade, que divulga vídeo de strip-tease ou, pior, que põe a público
gravação de transa para envergonhar e humilhar a mulher moderna que pede e
exige na cama; eita povinho desgraçado, que come doce de sidra e anda lonjuras
por uma geleia de mocotó de boi; que sobe morrarias com pernas cobertas de
varizes, mas que sonha com o corpo da artista de televisão; cultiva
comigo-ninguém-pode e joga sal atrás da porta para espantar o mau olhado; range
dentadura folgada na boca e almeja aparelho de dentes de acrílico para os
netos; que enfrenta muriçocas e pernilongos e come pastel de vento; que cresce
a crista por qualquer novidade, que a golpe de sol a pino reza o
creio-em-deus-pai e toma cachaça ao invés de vinho para brindar o corpo de
Cristo. Ô povo iscariotes! Ô povo vulnerável.
Ô povinho inhozinho, uns dizem, outros desmentem, a vida aqui é essa
ninharia, as línguas de curar bicheira cada dia maiores, tanta conversinha de
cerca-lourenço e engana-meireles promovendo discórdia. E os que se acham novos
burgueses, como a família Almirante e outras tantas, se aproveitam de tudo isso
e as urnas se enchem de votos, aprenderam com os mestres que inventam leis em
benefício próprio, e o povo com o chicote no próprio lombo, amando o algoz. O
Brasil caminha para o abismo, tomara que eu esteja errada. Tomara! Fico com o
pé atrás com essa gente diferenciada, que sobe no elevador social, leva os
filhos para a Disney, que viaja a prazo para Europa e troca de carro mesmo
quando o cartão de crédito estoura, transbordando de juros, gente que não
enxerga um palmo diante do nariz, que não querem ver gente caída nas calçadas,
com mão estendida, na fila do pão, criança furada por bala perdida, pobre em
aeroporto ou na universidade. Ganha mais quem tem mais, dinheiro atrai
dinheiro, dívida atrai dívida. Ando desiludida. E eu, que nada fiz, por qual
ângulo o espelho me toma?
Eltânia André nasceu em Cataguases, Minas Gerais, e vive em Lisboa. É autora do livro de contos Manhãs adiadas (2012) e dos romances Para fugir dos vivos (2015) e Diolindas , escrito em parceria com o marido, Ronaldo Cagiano (2016).