por Wellington Amancio da Silva___
Após
leitura de Borges tive uma revelação —
Luciano
Pilha até 1978 era um homem rico, comerciante e querido de bancos e
empresários, porém, da noite para o dia perdeu todas as suas terras e o
casarão, numa aposta infeliz de boteco. Perdeu por consequência os móveis e as
economias. A companheira, filha do Barão de Bonome, o deixou, pois já não
suportava seu vício no jogo e na bebida. Diante do que vi, eu mesmo desconfio
que Luciano não nasceu para ser próspero.
Voltou
a morar imediatamente na antiga casinha da roça miúda do seu finado avô
Apolodoro. Agora uns mosquitos não o deixavam em paz de noite, além daqueles
que se passam dentro da cabeça, zumbindo em pensamentos e preocupações.
Habitando
dentro da casinha de paredes nuas e sob ameaças de cobras e insetos ele lembrou
bastante do seu avô pobre, como se seu espectro estivesse no meio da sombra,
junto à parede. Apolodoro tinha sido décadas atrás o mais eficiente mago do
povoado. Lembrou-se que havia também um aprendiz, um jovem alto e magro de
sorriso esquisito a quem seu avô ensinava magia.
Tonhão
do Tarô, agora um homem alto, buchudo e suado, foi realmente o aprendiz do seu
avô. Assumiu o posto que o velho deixara com seu falecimento, porém, como
diziam por aí, não era tão “sabido” quando Apolodoro. Resolvia, ainda que
morosamente, todos os casos difíceis do povoado — problemas no matrimônio,
separação, contendas, objetos perdidos, sonhos ruins, olho-gordo, mau-olhado e invasão
de moscas varejeiras. Tonhão do Tarô cresceu aos pés de Apolodoro, como um
filho, aprendendo todos os rudimentos da Velha Arte.
Na
escuridão da casinha, naquela cama de colchão fedorento e côncavo, Luciano
Pilha lembrou-se dele, acreditou que precisava visitá-lo urgentemente. Estava
certo que resolveria seu problema, se ao menos ele tivesse a metade da “força”
que teve o seu avô. Porque o velho aprendera do grande Higino de Matusalém,
cangaceiro que se invultava na mata e curava assoprando picada de cobra coral.
Numa
noite muito escura de engolir a sombra das serras, dessas noites de sexta-feira
de começo de mês, em que as estrelas se tornam grandes, tal a um imbu maduro,
Luciano bateu à porta da casa baixa de Tonhão do Tarô. Este o recebeu com largo
sorriso de dentes separados.
—
Entre, meu senhor. Como posso ajudar a homem tão importante?
Luciano
Pilha o advertiu que perdera tudo numa aposta e que estava quase de esmola.
Tonhão do Tarô o escutava com semblante muito triste, cabisbaixo, cutucando as
unhas. Já sabia que um antigo inimigo de Luciano mandara fazer um feitiço para
empobrecê-lo.
— Mas o
senhor Luciano, que teve tudo e muito a vida toda, sabe que há altos e baixos,
e que é só uma triste temporada. Depois a fortuna retorna mais forte. Quem
lançou coisa ruim para o senhor vai viver até saber da sua vitória. Advirto —
disse com o indicador erguido — que o feitiço não partiu de negro ou de
indígena, nem de caboclo! porque eles nunca trabalham com tais mazelas, mas o
diabo, sim (um coronel te conjurou...). Eu vou fazer para o senhor um serviço
que adiantará o processo. Garanto que em três meses o senhor terá três vezes
mais do que perdeu. O senhor acredita?
— Ah, seu
Tonhão, eu acredito! — disse Luciano piscando os olhos.
Sentados
estavam os dois, lado a lado, num sofazinho, quando Luciano perguntou a Tonhão
se começaria o “trabalho” ainda amanhã. Tonhão o encarando, como um sorriso de
dentes separados disse: “Já comecei... O negócio eu já fiz agora mesmo”. Com
força bateu as mãos três vezes e bradou:
—
Laodiceia, menina, asse logo os dois preás, agorinha!
Ora,
Tonhão do Tarô vivia sozinho há muitos anos, então, por que chamou por
Laodiceia, e quem seria essa? Luciano olhava de lado sem entender o
procedimento. Sentado no sofazinho, um tanto com ar de submisso, tinha a coluna
curva dos raquíticos. O mago, por sua vez, olhava com olhos decididos, nobres,
como aquelas pessoas que dominam uma arte, mesmo sendo pobres.
De
repente nas mãos de Tonhão do Tarô surgiram dois preás pequenos, escuros de
muito assados e pingando óleo bastante. Seja como for, colocou um preá ainda
fumegando de quente no bolso da camisa de Luciano, porém, o bichinho assado
desapareceu lá dentro, como se no bolso não houvesse nada.
—
Feitiço é feitiço, seu Luciano! Nunca falha! — disse Tonhão — É serviço certeiro!
Pode voltar para casa agora e fique tranquilo. Não te dou mais de algumas horas
para receber uma boa notícia. Mas eu te peço que me faça um acordo justo, que
quando o senhor voltar à boa vida me abençoe arranjando um emprego para o meu
sobrinho precisado, o coitado...
— Ah,
seu Tonhão! Será a primeira providência que realizarei! Pode confiar. Seu
sobrinho não será decepcionado, nem também o senhor.
— Então
Seu Luciano não precisa pagar qualquer tostão por este serviço... — disse
Tonhão numa voz muito pausada e sinuosa, o encarando com aqueles olhos redondos
de brancos, no meio de bastante sombra, por causa da lâmpada fraca da sala.
Luciano
se mexia no sofá, como se alguma ripa o incomodasse. Não tinha mesmo dinheiro
para pagar pelo serviço de Tonhão. A este recorria por desespero.
— Ah,
seu Tonhão! Eu agradeço... Eu agradeço... Compensarei o senhor...
Alta
madrugada quando Luciano chegou em sua casinha e mal se deitou, ouviu alguém
batendo à porta, chamando seu nome com voz grave e tonitruante. “Seu Luciano
Pilha... Seu Luciano Pilha...”. Era um homem a cavalo, vindo da cidade.
— Seu
Luciano. Trago uma carta do ilustre Barão de Bonome, aquele que fora seu sogro.
Receba, que eu já vou.
O homem
quando entregou a carta numa manobra de pernas montou no cavalo e voltou-se
imediatamente de onde veio sumindo-se na escuridão. Na carta do ilustre Barão
de Bonome havia uma convocação a Luciano Pilha tomar posse da função de
secretário na presente gestão de Cassiano, Prefeito de carisma da cidadezinha
de Tangarapiú. Infelizmente o antigo secretário falecera há uma semana.
De
manhazinha, ainda orvalhando, no primeiro canto do galo, entre o claro e o
escuro do céu, Tonhão do Tarô bate à portinha de Luciano Pilha.
— Ó,
felizardo Luciano, meus parabéns! Eu soube que o senhor habitará na cadeira de
secretários dos negócios econômicos da prefeitura sob gestão do impoluto e
bem-quisto prefeito Cassiano.
— Ah,
seu Tonhão! Não é que deu certo o seu serviço... Muito, muito obrigado, ó, seu
Tonhão... — disse apertando as mãos, a coluna curva dos raquíticos.
— Pois,
eu já vim no assunto daquele acordo que tratamos.
— Ah,
seu Tonhão! Mas eu ainda nem tomei posse...
— Mas
vai tomar!
— Sendo
assim, por favor me diga como proceder.
— Pois
bem. O senhor não poderia arranjar um servicinho remunerado para o meu querido
sobrinho, neófito de qualquer profissão, coitado, precisado muito de renda para
estudar?
— Ah,
seu Tonhão! Foi mesmo esse o nosso
trato, mas farei melhor do que me pediu. Me espere subir ao cargo!
— Pois,
vá na fé, Seu Luciano, porque meus “serviços” não falham...
— Ah,
seu Tonhão! Eu creio. Eu digo amém.
Logo
tudo mudou. No cargo de secretário, Luciano trabalhava somente 18 horas semanais.
Na casa grande e mobiliada, concedida pelo prefeito carismático, sentava-se à
mesa ampla. Em copo de vidro fino bebia jurubeba da melhor destilaria, comia os
melhores e graúdos ovos de galinha de capoeira, carne de fino corte e macia de
boi de bom pasto. Na sobremesa, se lambuzava de doce de leite, manjar e baba de
moça. À noite dormia inchado de bucho após tomar saborosa sopa de feijão num
tacho fundo.
Tonhão
do Tarô ascendeu na casa de Luciano aos serviços de cuidador da horta, do
galinheiro e dos bichos de médio porte, a saber, bodes e porcos. Trabalhava
como queria e quando, exceto quando tinha que atender aos chamados do patrão, a
qualquer hora do dia ou da noite. Morava naquela fazenda, porém numa casa à
parte, afastada, de bom tamanho e mobiliada. A cada quinze dias, recebia três
notas de cem mil Cruzeiros com o rosto cinza de Kubitschek estampado.
Numa
sexta-feira treze de lua redonda e prateada, no penúltimo mês de mandato do
prefeito Cassiano, um homem a cavalo vindo da capital trouxe uma carta a
Luciano. Era um convite da pena do ilustríssimo Barão de Bonome, outrora seu
sogro. Trazia boas notas! “Pela enorme qualidade dos serviços prestados” —
estava escrito — o senhor Luciano Pilha é promovido a secretário de finanças no
Palácio da Aurora, na capital, durante o tempo que achar por bem assumir.
De
manhazinha, ainda orvalhando, no segundo canto do galo, o Sol despontando nas
serras, Tonhão do Tarô bate à porta de mogno de Luciano Pilha.
— Ó, felizardo
Luciano, meus parabéns outra vez! Eu soube que o senhor residirá na cadeira de
secretários de finanças no Palácio da Aurora, na capital.
— Ah,
seu Tonhão! É verdade. — disse todo seguro de si.
— Pois
eu vim pedir outra vez aquele primeiro favor, que na verdade era acordo. O
senhor esqueceu?
— Ah,
seu Tonhão, aquele para seu sobrinho? Esqueci não... Mas, deixa eu tomar
posse...
— Eu
deixo, sim, Seu Luciano. O senhor vai tomar posse!
— Sendo
assim, farei ainda mais do que me pediu.
No
ofício novo Luciano trabalhava doze horas e não mais. Acordava às oito horas se
remexendo na cama, como um gato procurando a melhor posição de conforto. No
casarão ainda maior onde morava bebia vinho gordo e sanguíneo da melhor safra
do Sudeste. Comia filé mignon com feijão novo sem o mínimo sinal de gorgulho,
comia um arrozão classe A bem enxuto, com folhas de manjericão, coentro e
rodelas de cebolinha regados a azeite de oliva português original. Na
sobremesa, se lambuzava na baba de moça, na cassata alemã, na torta floresta
negra e no strudel. À noite só o diabo sabia o que ele aprontava na
Boate Night Dance.
Tonhão
do Tarô vivia por perto, de modo que observava o progresso de Luciano. Já não
cuidava de bicho ou de horta na propriedade do patrão. Tornou-se jardineiro,
sempre numa farda azul como um tesourão na mão olhando para as árvores. Aparava
raramente duas ou três algarobas, sendo que o resto do dia tirava para resolver
as cruzadinhas, assistir os filmes, empreender passeios e praticar sua arte. A
cada quinze dias, recebia seis notas de cem mil Cruzeiros com o rosto cinza de Kubitschek
estampado.
Numa
sexta-feira treze de lua plena, exatamente dois anos e seis meses depois de assumir
a secretaria de finanças no Palácio da Aurora, na capital, um homem vindo de
Brasília trouxe uma carta a Luciano. Na carta o ilustre Barão de Bonome
convidava-o para tomar posse da função de secretário de finanças junto a uma vultosa
e rentável empresa estatal.
De
manhazinha, ainda orvalhando, no terceiro canto do galo, quando o Sol ainda não
aqueceu a paisagem de todo e é possível encará-lo sem queimar os olhos, Tonhão
do Tarô bate à porta grande de aço inox da enorme casa de luxo de Luciano
Pilha.
— Ó, doutor
Luciano, meus parabéns outra vez! Eu soube que o senhor descansará sobre a
cadeira de finanças da secretaria de uma vultosa e rentável empresa estatal. Ó,
meus parabéns.
— Ah,
Tonhão, muito grato, meu caro...
— Pois eu
vim aqui somente para lembrar ao senhor daquele meu antigo pedido. Certamente
esqueceu...
— Ah,
Tonhão. Esqueci não. Arranjar o emprego do seu sobrinho... Não seria isso?
— Sim,
seu Luciano. Será que desta vez... Meu sobrinho, ainda neófito de qualquer
profissão, precisa muito de renda para estudar na capital. Sonho dele... quer
ser engenheiro...
— Ah, Tonhão,
meu caro... Desta vez farei ainda melhor. Me espere subir ao cargo. Eu te
arranjarei ainda melhor salário, profissão e moradia.
Tonhão
do Tarô arregalou os olhos de um modo muito incomum.
— Seu
Luciano. Nada disso eu pedi para mim, nunca. Pedi para meu sobrinho, o senhor
sabe disso. Lá onde eu morava estava tudo bom demais para mim. A minha vida
estava do jeito que eu queria, mas o senhor saiu por aí me arrastando, ano após
ano, e nunca perguntou quem seria o meu sobrinho e do que ele precisava, nem
quis abençoar o coitado. Então, como o senhor não cumpriu a antiga sua
promessa, só esforçasse em me ajeitar me engabelando, me devolva aqui o meu
preá, por favor...
Tonhão,
num gesto rápido e agressivo, socou a mão no bolso do paletó de Luciano puxando
um pequeno preá, ainda fumegando de quente e pingando óleo. Cuidadosamente pois
o bichinho no chão que por sua vez ressuscitou e correndo sumiu-se na caatinga.
Vendo a cena, Luciano Pilha caiu em sono profundo sobre o sofá de couro
legítimo.
Acordou na escuridão do quarto, naquela cama de colchão fedorento e côncavo, na casinha da roça miúda do seu finado avô Apolodoro.
[1] Do livro “Contos
Nordestinos” (2022).