Chegou devagar, o meio sorriso de sempre e ofegante. Bastante ofegante. Você sabe que ele fuma sem parar faz quarenta anos e sempre foi sedentário. Na saída, quando vão juntos embora, apartando-se de um terceiro amigo, ele se queixa, estranho cansaço, diz que não fez nada de extraordinário para se sentir assim. Você conhece todos os perrengues da vida dele, do casamento que ficou pelo caminho, da vida solitária apesar do carisma, simpatia e inteligência cativantes e dos quase mil amigos de Facebook – que talvez o admirem de verdade. De uma forma ou de outra se interessam por aquela persona de bom gosto, culta, inteligente e aguerrida nos comentários políticos, que falava de ópera com a naturalidade de um veterano crítico de jornal, sem afetação. Alguém que ainda conhecia em detalhes a vida de famosas divas, suas turnês, árias prediletas, as interpretações mais célebres. Sabia também dos dramas e tristezas daquelas mulheres incomuns.
Mas o seu peito arfava quando saímos da casa do terceiro amigo, que talvez não tenha percebido aquele mal-estar, até porque ele era discreto e capaz de manter as boas aparências, mesmo em situações desesperadoras. Alguém que renunciou a uma aposentadoria e a um futuro resguardado e tranquilo. Preferiu deixar-se levar pelas circunstâncias dos trabalhos que teve, pelas pequenas malandragens necessárias para sobreviver; que trocou a pequena herança dos pais por uma tournée pela Europa: La Scala, La Fenice, San Carlo, Albert Hall, L`Opéra. Até atravessou o Atlântico lá no norte para ir ao Metropolitan. Um gosto que deu a si, revivido tantas vezes depois ouvindo CDs com as óperas que presenciou in loco.
Você pressente e sabe que seu amigo está morrendo, não solta nenhuma lágrima e nem recomenda que vá a um médico ou pronto socorro ali, naquela hora mesmo, sondar o estranho e repentino cansaço que fazia com que arfasse o peito tão longamente, andando devagar, reduzindo ainda mais o passo nos pequenos aclives da calçada, dando volta por outro quarteirão para evitar ladeiras e ir conversando com estranha naturalidade, falando devagar sobre o que se vê na rua àquela hora, sobre a caótica e lamentável situação política, sobre uma exposição qualquer em cartaz ou sobre aquela gente se acotovelando na calçada, em frente a um bar da moda, esperando o manobrista trazer o carrão amarelo, modelo europeu, ronco forte.
Ele acende outro cigarro e pede que você pague um café na padaria
ainda aberta. Sentam-se e bebem o café com o pastel de nata que você incluiu na
demanda, observando ele falar e relembrar algum causo, alguma cena com Maria
Callas, e ele vai fazendo tudo isso pausadamente, até lhe parece que tem certa
dificuldade, mas é tão discreto que ninguém, a não ser um amigo, perceberia. Dá
um gole no café, morde o doce, conta outro trecho da história e isso vai se
repetindo, não necessariamente na mesma ordem, mas no mesmo tom de voz sem
ênfase.
Parece que seu amigo não mudou muito nos últimos 20 anos ou pouco mais que isso, quando se conheceram e ele o chamava para tomar whisky e bater papo na sala dele, após o expediente, quando todos haviam ido embora e vocês iam conversar e ouvir trechos de ópera. Sem pensar no tempo, sem pressa de voltar para casa, até com risco de perder o último ônibus.
Agora ele fala mais devagar, anda com dificuldade e explica, rindo, que é preciso tomar cuidado com o velhinho. Parou de trepar faz algum tempo, não teve mais namoradas, talvez tenha sublimado tudo com suas heroínas, um sonho de Walquíria, um desejo por Isolda, Brünhilde... A castidade opera milagres e cenas não lhe saem da cabeça, narradas como num êxtase tranquilo, sereno, de um narrador quase silencioso, mas que deixava marcado o interlocutor, como uma breve suspensão do tempo para que aquela cena pudesse ser descrita e vislumbrada por quem ouvia.
E tudo isso passa pela cabeça ao ouvi-lo com a sensação de que ele está morrendo e que você não pode fazer nada, por causa do seu estranho pudor que o torna incapaz de forçá-lo a ir a um médico àquela hora, algo que nem passa pela cabeça dele. “Para quê?”, talvez respondesse perguntando. “Deixa seguir o caminho natural das coisas”, diria. Ele também sabe que está morrendo, tem consciência da própria decrepitude, da própria decomposição, mas não se faz de rogado, pelo contrário, permanece indiferente com sua fleuma não britânica, sorriso sardônico, às vezes melancólico ao pensar nas tantas batalhas perdidas ou sequer enfrentadas, mas segue como se nada tivesse acontecido ou acontecendo, como se a dor do seguir vivendo/morrendo estivesse sempre presente, normal. Não há sinal de homem velho ou em conclusão na vida, há só a torrente continua, dormindo ou acordado, tanto faz. O ouvido mouco, os gases que teimam em se produzir e a combustão espontânea que exala dum corpo que perde seus controles – se é que os teve -, que volta a naturalizar-se, forçosamente, com a transformação prevista e óbvia. E vai se decompondo, mesmo estando vivo, coração batendo, cérebro ainda aceso e luminoso com fagulhas que escapam ao fogo fatum. Mas você não sabe o que fazer quando sabe que seu amigo – ou você mesmo – está morrendo.
A morte surgindo daquele modo talvez tivesse a ver com o jeito com que levou a própria vida, havia uma conformação, não um conformismo. O despreocupado amigo, toda vez que ficava sem trabalho e era despejado, simplesmente batia na casa de algum de nós pedindo abrigo, pouso que podia durar alguns dias ou um ano inteiro. E não se tinha coragem de pedir que ele se fosse embora, não se incomodava com o mais reles e moído sofá. Quando um amigo se irritava com o prolongado daquele pouso, ele saía com a mesma naturalidade e ia bater na porta de mais outro amigo.
Mas vocês dois embarcam no que talvez seja o último ônibus. Você vai descer bem antes que ele com a sensação de que será a última vez que o verá. Você desce, o ônibus parte, faz um aceno ao que ele responde com outro aceno e se vai.
Fica parado um pouco na esquina, preferia não ficar pensando
naquilo. E vai embora sem saber o que vai ser amanhã. Como sempre foi.