Anthony Almeida__
Foto: Williams Aguiar - Divulgação - Sport
Às vezes, fica parecendo que sou um sujeito saudosista demais, que vive
com saudade de Pernambuco. Leitoras e leitores, sei que alguns de vocês fizeram
uma cara de "só às vezes?". É, só às vezes, sim. Outros, podem até se
perguntar, quando leem uma crônica mais salpicada de saudade: pra que você foi-se
embora, então, danado? Fica aí escrevendo o tempo todo que tá com saudade, que
tá com saudade. Antes não tivesse saído de lá. Que é que você veio cheirar em
São Paulo?
Pois é, o quê? Vim cheirar outro canto do Brasil. Sou brasileiro, o
Brasil é meu. Ando por onde eu quiser, moro onde decidir, perambulo por onde os
meus passos se animarem de caminhar. Pensando assim, ganhei o oco do Brasil.
São Paulo é só uma etapa dessa oquidão. Já estendi minha tenda em
Caruaru, Recife, Camaragibe, Presidente Prudente e Presidente Venceslau. Antes
dos presidentes, Pernambuco estava sob meus pés. Foi em Prudente e Venceslau
que comecei a olhar para Pernambuco de longe.
Ciente de que a vontade de andar, perambular e viver sob tendas
significaria ter raízes presas nas nuvens, não titubeei. Fui. Aqui estou.
Aceitei conviver com a distância rotineira. Vez outra bate uma saudade do meu
chão velho? Normal, é assim mesmo, a primeira vida e a personalidade nasceram
lá. Minha mãe, meu pai estão lá. A casa primogênita, lá. Nada de exagerado,
percebam. Qualquer migrante sente dessas coisas. Saudosismo passou distante.
Acontece que Pernambuco é enxerido e fica se mostrando e amostrando para
mim. Surge numa breve aparição e depois se some. Uma visagem que traz um som
gostoso, um cheiro que esquenta o peito, um sabor colorido... Um Pernambuco que
me aparece aqui, há dois mil setecentos e oitenta e quatro quilômetros – e
escrevo por extenso para que as letras tentem dar conta da distância. Essa
visagem, então, me faz querer o Pernambuco acolá.
Quantas vezes vi Pernambuco aqui?
Ouvi, primeiro, num rapaz que me contou que o seu avô é nascido na
cidade de Exu, o mesmo chão pernambucano que gerou o sanfoneiro Luiz Gonzaga.
Outro sanfoneiro, duma das casas de tábuas da minha rua venceslauense, puxava o
fole e beliscava a Feira de Caruaru. A canção, de Gonzagão, me beliscou.
Caruaruense que sou, fiquei doidinho para feirar, tomar um caldo de cana, comer
um taquinho de queijo coalho...
Minha própria rua também já me cutucou. Tive curiosidade de saber quem é
o seu patrono. Descobri, junto de um sorriso conterrâneo, que Henrique Dias é
pernambucano. O homem, que viveu lá no século XVII, está aqui para me ser
coincidência e lembrança. A coincidência é uma portadora de visagens...
Nas vendas da Avenida Tiradentes há, como em toda loja, letreiros e
telefones de contato. Bem: 3271-XXXX me pareceu uma gaiata coincidência, acolá
os números comerciais são 3721-XXXX. Ah, tem mais, em ligações interurbanas
usa-se o prefixo do DDD: aqui (18), lá (81). A coincidência joga com os mesmos
números, mas adora vê-los embaralhados.
Sutilezas, sutilezas, eu sei. Tive, porém, visagens encorpadas, de corpo
presente mesmo.
Numa feira de domingo, busquei meu pastel semanal e, por trás da
pastelaria móvel, um sujeito abriu uma lona no chão, distribuiu sua mercadoria:
dúzias de sandálias xô-boi. Até aí, nada de tão coincidente, as alpercatas de
couro, por mais que se vendam em Pernambuco, também se vendem noutros estados
do Nordeste. Animei de vê-las e fui negociar com o vendedor, queria uma, que a
minha já estava roída nos calcanhares. Tenho ouvido bom para sotaques e logo vi
que o homem era do interior de Pernambuco, talvez de Alagoas ou Paraíba. Sou de
Caruaru, conhece? Não, não fui eu quem falei. Ouvir isso foi quase um abraço.
Para não dizer que era mentira, o caixeiro fez questão de me mostrar a placa da
sua caminhonete: PE – CARUARU.
Nessa última visagem, confesso, há um pouquinho de saudosismo, sim. Mais
saudoso seria se eu enumerasse meus objetos com lembranças. É óbvio que haverá
visagens neles. Por isso, não conto que tenho um ímã de geladeira, uma
camiseta, uma capa de caderninho, um cartão-postal-marcador-de-páginas com a
bandeira pernambucana; um livro chamado "Pernambucânia", outro
"Terra de Caruaru", um folheto de cordel que fala sobre o
pernambuquês. Não, não, esses objetos não contam. Também não contam os discos e
discos que ouço em cancioneiros, playlists chamadas "Que som é esse que
vem de Pernambuco?", "Caruaru" e "Cancioneiro de quem vive
distante", que têm 96% das músicas de artistas pernambucanos.
Contam as situações que vejo pelas ruas. Um ciclista que passa vestido
com a camiseta do Sport Clube do Recife; uma mulher que se protege do
coronavírus e cobre sua boca e nariz com uma máscara estampada com a bandeira
pernambucana; uma padaria que vende um pão francês que tem o gosto igualzinho
ao da padaria da minha infância; a caminhada até essa padaria, que me faz
lembrar do meu avô me ensinando a ir comprar pão...
Pensando direito, talvez eu seja meio saudosista mesmo. Só talvez.
Presidente
Venceslau. Julho, 2022.