Terra dividida, de Eltânia André

 

por Iaranda Barbosa__




Família só é bom em retrato, dizem algumas pessoas. E talvez tenha sido inspirada nessa frase que Eltânia André traz o retrato de uma família mineira, em Terra dividida. A polifonia do livro se constitui através das vozes de narrativas em primeira pessoa que nos revelam visões diferentes dos mesmos fatos, fluxos de consciência e confissões a respeito do que cada pessoa ali sentiu, passou, vivenciou, experienciou.


As críticas sociais e o panorama político da época se misturam aos resquícios do poder patriarcal bastante presente na tradicional família de origem portuguesa, pertencente a uma da pequena cidade que conserva costumes e tradições que considera imutáveis. As personagens narram suas próprias histórias e assumem usufruir tanto das heranças simbólicas, tais como o sobrenome do patriarca, quanto materiais, resquícios de um passado de fartura, embora a família vá se dissolvendo aos poucos, mas não quer perder os privilégios que o sobrenome ainda lhe proporciona.


As recordações se desenvolvem através de parágrafos longos nos quais os pensamentos ora resgatam fatos e situações antigas ora justificam as atitudes tomadas no presente. Certos posicionamentos, inclusive, levam em consideração o julgamento social. Logo, o orgulho, a hipocrisia e a vida de aparências (sobretudo a estética) constituem e muitas vezes definem como as personagens irão performar com o intuito de evitar os mexericos de uma cidade pequena.


Vale ressaltar que, no enredo, os indivíduos que decidem assumir quem realmente são ou quem realmente querem ser apresentam-se mais felizes e, ao mesmo tempo, são os mais criticados porque buscam romper com os moldes sociais, seja almejando vivenciar a própria sexualidade, seja desromantizando a maternidade.


Os relatos polifônicos que detalham perspectivas individuais das personagens para consigo mesmas e para com as outras são expostos em capítulos curtos e intensos. Neles, medos, fragilidades, segredos, inquietações, sonhos, desafios, intimidades, rotinas, saudosismos, tradições e costumes transitam entre o público (rua, vizinhos, sociedade) e o privado (casa, parentes, empregada, amigos). Há, em alguns momentos, oscilações entre parar o tempo, a fim de manter as mesmas estruturas do passado, e abandonar a educação repressora,  os estereótipos, os arquétipos de homem, de mulher. Portanto, existe em cada uma das vozes a vontade, a pulsão, de saírem transformadas do casulo, voarem para longe da cela que as aprisiona.


A vida burguesa da família, embora claramente em decadência, se complementa com Socorrinha, a empregada doméstica que aparenta ter domínio de tudo e todos na casa, inclusive dos animais. Ela também se desnuda ao nos revelar, através de monólogos interiores, reflexões sobre castrações sociais, os próprios conflitos e dramas familiares e a projeção de um futuro promissor para os filhos.


Assim, Terra dividida, de Eltânia André, constitui-se uma leitura carregada de informações, referências e detalhes que se complementam e se encaixam tais quais peças de um quebra-cabeças. O núcleo familiar apresentado, portanto, pode ser entendido como uma alegoria a fim de nos fazer refletir a respeito das questões humanas e do contexto político, econômico e social que vivenciamos atualmente.




Eltânia André
nasceu em Cataguases, Minas Gerais, e vive em Lisboa. É autora do livro de contos Manhãs adiadas (2012) e dos romances Para fugir dos vivos (2015) e Diolindas , escrito em parceria com o marido, Ronaldo Cagiano (2016).

 






Iaranda Barbosa,
formada em Letras Português-Espanhol, pela UFPE, possui mestrado e doutorado em Teoria da Literatura pela mesma instituição. Salomé (selo Mirada), novela histórica é sua primeira obra ficcional longa. A autora possui contos em antologias e revistas de arte, assim como diversos artigos científicos publicados em periódicos especializados em crítica literária.