Foto: David Peters |
Bem,
na verdade, fiz o que devia fazer. Não sou – ainda – completamente insano. Por
dias, pensei que havia agido errado, passado dos limites, castigado a todos e a
mim. Mas não ligo muito sobre o que venha a acontecer comigo; se vou ser morto;
se vão me trucidar na próxima esquina; se a minha carne será servida como
iguaria aos porcos. Não mesmo. Esse é o problema: a ausência de amor à vida, amor-próprio,
como enaltecem os flâneurs. Nos melhores momentos, Jaqueline dizia:
“Alan, você devia comemorar; devia sair e bater um papo com os amigos. Você não
está feliz?!”. Ainda estou para descobrir o que é a tal felicidade; os poetas
ainda a maceram na boca e não a digerem, por preguiça, por medo. Se sou um
poeta, não sei; contudo, permaneço com um grande pedaço de pedra intragável no
meio da traqueia. Isso, logicamente, comprime a minha respiração. O único
instante de êxtase puro foi o nascimento do meu filho, o Arthur. Descreveria,
para ser mais justo, como o evento que dividiu a minha vida em AA/DA – como
Cristo, AC/DC. Arthur é o único por quem penso nas minhas atitudes. Já cogitei
matar e repicar o corpo do gerente do banco, um homem carrancudo, maldito, que
conheço há, talvez, vinte anos, e roubar uma quantia generosa, mudar de
endereço, mudar de nome e CPF, a porra toda; mas aí me vem à cabeça o Arthur. Pensei,
também, em fazer o curso de segurança privada, para trabalhar em carro forte,
dado o meu porte físico e a minha inteligência – que, convenhamos, é bem
superior à dos camundongos trogloditas em geral –, e, logo na primeira semana,
armar com os comparsas um assalto lindo, espetacular; mas, como sempre,
aparece-me o Arthur em sonho e me demove de toda a loucura. Eu não seria capaz
de passar dez dias sem o ver. Da última vez que ele viajou com a mãe e o
padrasto para Buenos Aires, eu quase não suportei de saudade; foram longos sete
dias de exaustão e abandono. Se Jaqueline tivesse mentido, se passasse mais
dois dias, eu seria capaz de buscá-lo, fosse como fosse, roubar um avião e me
esconder com ele no Paquistão. Ela sabe disso, do que sou capaz, por isso evita
a desordem. Mas o que estou preparado para despejar, agora, é exatamente o que
aconteceu no dia seis desse mês de novembro de 2021, o dia mais importante do
ano, o aniversário do meu filho. Duas semanas antes, preparei-me para comprar
um celular novo para ele. A mãe me recriminou, disse que ele já não para no
computador e no celular, e que assim eu o estimularia à vadiagem. “Vacilação”,
rebati, alegando que todos os nerds que eu conhecia, tanto eu como amigos
desgarrados, da infância, hoje eram juízes, engenheiros, auditores, o escambau.
Ela falou que eu não era referência. Emendei que, se sou pai, certamente meu
filho irá puxar os meus gostos etc. Não estiquei para não arrebentar. A
intenção era participar do seu aniversário, sem nenhuma intercorrência; o
menino não poderia se sentir mal, acossado ou deprimido. O grande dia chegou.
Eu sentia uma agitação incomum, um nervosismo que me fazia tremer as pernas,
como se algo de muito ruim fosse de fato acontecer. Não era possível, estava
tudo pronto para ser um dia perfeito – falo perfeito do ponto de vista da
celebração. Saí de casa e me deparei com Nelson, o vizinho que conta os meus
passos: “Como é, Alan, como vai essa força?!”. Pensei em mandar o sujeito tomar
no meio do olho do cu, mas a circunstância não me dava alternativas nem tempo.
Ele, decerto, queria saber alguma novidade. Nada mudou. Seria matéria de
fuxico, como ele fez quando me separei de Jaqueline. “Tranquilo. Doido para dar
um soco em um… Nada, brincadeira. Tô de saída, depois a gente se fala”. Desci à
rua e consegui pegar o ônibus quase vazio. Uma senhora quis tirar a minha
atenção: “Que dia lindo, não acha, rapaz?”. Fiquei uns dois minutos olhando
para o nada e respondi: “Depende de que perspectiva. A senhora fala do sol, do
tempo?”. “E seria de quê? Tanto faz… Sim, o céu está lindo”. “Ah, nem reparei.
Parece que sim”. Ela fechou a cara, pegou o celular, e se virou para o corredor,
para me ignorar – era exatamente disso que eu precisava; continuar ileso,
incólume. Não pego ônibus porque quero; é por necessidade. Antes de sair do
ônibus, a mulher ainda soltou, baixinho: “Enjoado”. E eu, para esquentar o
corpo, respondi alto: “Até mais, caquética!”. Ela ainda ficou gritando com o
motorista para que ele fizesse algo. O motorista, tendo um dia inteiro de
labuta para cumprir, mal levantou o rosto; seguiu o trajeto. Andei dois
quarteirões, serelepe, pensando na reação do meu filho. Bati à porta, uma, duas
vezes, até que a minha ex-sogra, Inalda, a abriu. Mal olhou para mim, com cara
de desdém e nojo, e gritou para o moleque: “O seu pai está aqui, Arthur! Venha
falar com ele!”. Esse “venha falar com ele” saiu como uma justificativa para
ela se ver longe de mim. Fiquei parado, em pé, na sala estilo anos sessenta. Olhei
em volta e achei umas peças que eram da minha coleção e que, por conta da
mudança, pensei que podia ter perdido ou sido roubado. De fato, um roubo; ela
nem fez questão de escondê-las. Já, aí, mudei o meu estado de humor; e não
preciso de muito para isso. Meu filho chegou e me abraçou com muita força.
“Papai, você veio!”. “Sim, meu filho, como poderia perder o seu aniversário?! Tome
o seu presentinho”. Contra tudo e contra todos, dei o bendito celular novo, que
ele tanto queria, um modelo de última geração, daquela marca da maçã mordida. O
menino saiu pela casa gritando e pulando. Pelo menos, aquela euforia apagara
uns dias sombrios que haviam passado, da minha ausência, por algum problema
intrínseco de saúde, que não devo falar. Jaqueline apareceu, com cara de bicho,
e ficou me encarando por cinco ou dez minutos; como se quisesse me comer vivo.
Não falou nada. Até fez um carinho na cabeça do filho e disse: “Muito bem. Um
celular novo para lhe ajudar nos estudos”. Ela é dissimulada; sabe disfarçar
bem. Olavo chegou, o marido dela, com cara de poucos amigos. Estava carregado
de bugigangas. Decerto seria para a decoração. “Chegou cedo, Alan; a festa só
começa meio-dia, uma hora!”. “E eu não posso ficar com o meu filho? Chego a
hora que eu quiser”. Entramos num embate de, pelo menos, vinte minutos.
Jaqueline, então, tentando apartar, soltou a seguinte frase: “É por isso que
não te chamo para nada!”. Todos se calaram. Estavam esperando que eu fosse
embora ou que soltasse uma boa resposta, ou, quem sabe, ficasse magoado.
Magoado é o caralho. Ir embora é para os fracos. Não falei porque não carecia.
Comecei a arrebentar no chão os meus objetos de coleção. Eram meus, então faria
o que bem entendesse com eles. Jaqueline colocou as mãos na cabeça. Olavo se
afastou; um covarde. Inalda quis me segurar, mas joguei a velha para o outro
lado da sala, num impulso, que a fez dormir; apagou. Todas as atenções se
voltaram a ela. Subi para pegar o meu filho. Ele estava alheio a tudo; só via à
sua frente o celular. Pegamos algumas roupas, a mochila dele, alguns
brinquedos, e saímos sem sermos percebidos. Esse, com certeza, para todo o
sempre, foi o melhor aniversário do Arthur.