Uma casa em Caruvenceslauru | Anthony Almeida

 

Anthony Almeida__



Estou de partida, uma partida que desejei. Quero estar lá, mas construí muita coisa no aqui. Estou aqui, gosto de muito do que tenho no aqui, mas construir algo lá, levantar algo novo, reocupar construções do meu passado, me faz querer estar lá. Queria somar; multiplicar seria ainda melhor. A divisão, porém, junto do seu gosto indeciso, é o sabor que sinto antes da viagem. Queria colar o aqui e o lá, costurar uma transgenia com o melhor do lá-aqui, entrelaçar o mais importante e acolhedor do aqui-lá.

 

Caruaru, meu lá.

Presidente Venceslau, meu aqui.

Caruvenceslauru, meu querer de hoje.

Caruvenceslauruense, quem sou agora.

 

A casa daqui é minha, ainda que seja alugada. A de lá, não, ainda que própria. A de lá é dos meus pais. Se é deles, também deveria ser minha, mas não é. Não desprezo a herança, sei que, legalmente, tenho direito ao usufruto da moradia. A casa do número 84, ainda assim, não é minha. Minha casa de lá era a do número 208, nela, eu brincava com Bulóque. Meu pai chamava – Bulóóóóóque! – e o cachorro branco de manchas pretas e marrons vinha, depois de ter perambulado, e muito, por todo o Novo Cedro. Não há Bulóque na casa dos meus pais. Nem há mais casa do número 208. Bulóque sumiu, a casa caiu, mudamos. Eles, para a 84, eu, para longe, depois muito longe. De modo que, ainda que eu tenha visitado a 84, pernoitado, tirado uma temporada por lá, brincado com os latidos de Rossi, da pelagem bege, é com a 208 que sonho quando meu inconsciente quer me dizer algo sobre o lar. Na venceslauense, número 727, tenho o ronronado do Pisco. Ele vem me pedir cafuné, embola pra lá, embola pra cá, pede carinho na barriguinha branca e depois dorme aconchegado em minha canela. Dormimos na camona, ainda que ele tenha a sua caminha. Gostamos da nossa companhia.

 

Em Caruvenceslauru tem Bulóque,

tem Rossi

e tem Pisco.

Tem a cama que escolherei.

O número da casa: 6.

 

O quintal da 727 é triste e coberto de cimento. Tem um canteirinho fino e um quadrado onde cresce um pé de pinha. O perfume de pinha sobe pelos dias. Mas eu não gosto de pinhas. Melhor para as abelhas, que devoram todas. Estes são os únicos pedaços de terra exposta e aberta para o plantio. Plantei no canteiro: macaxeira, quiabo, coentro, manjericão, batata doce, tomate e mandacaru. Eu plantei no canteiro. Hoje, restam só os mandacarus e seus brotos, que se multiplicaram nos seus espinhos. Uma tamarineira, que cresceu até uns quatro palmos no quadrado, do lado da pinheira, foi decepada pelo proprietário da casa de aluguel. Não plantei mais nada depois disso. Mas os espinhos do mandacaru continuaram a crescer. Lá é diferente, meu pai tem um quintal menor do que o meu e tem um sítio dentro do quintal. Planta coco e mamão, coentro e feijão, planta milho, melancia e maracujá, cheira flor branca de muçambê e flor amarela de quiabo e de maxixe, colhe maxixe e quiabo cru – já me deu até semente dele e do coentro. Tenho, ainda, algumas comigo, levarei para ele plantar. Lá tem até catingueira, mameleiro, azedinho, falta só umbuzeiro. Tinha caju e tinha uva na casa do número 208. Tinha limão, coco e acerola. Aqui tem só uma aceroleira na esquina do vizinho, que nunca tive coragem de roubar. Lá eu roubava manga, no tempo de eu menino.

 

O quintal é uma aventura em Caruvenceslauru.

Nos fundos da casa 6 tem umbuzeiro gigante. Vários.

Tem pé de caju-limão, quiabaxixe, mangamão e manjerientro.

Tem um caramanchão em que trepam videiras e maracujazeiros.

Tem um teto de folhas de onde fruteiam maracujuvas.

Tem uma tamarineira adulta,

que esbanja seus tamarindos,

que pede para a gente sacudir a sandália em sua copa,

que deixa cair suas bagas generosas.

 

O terraço da 84 não existe. A cara da casa é direto para a rua, da qual não me lembro nem o nome. A 208 ficava na Francisco Maximiano. Faz um tempo, minha mãe me mandou uma foto da nova cara da casa, logo depois que meu pai inventou uma varanda. Ele engendrou um girau de varas e caibros em cima da calçada, fez outra calçada sobre a rua de terra, fez a rua de nome mistério mais estreita. Meu pai é um fazedor de verdades e, agora, contempla seu invento enquanto se embala na rede atracada na varanda, se balança e toma água de coco do seu coqueiro. A 727 tem um pedação do terraço coberto de concreto. Mas há um retângulo de solo forrado por britas, uma tentativa de jardim japonês, de onde cresce outra pinheira e um arbusto de flores de ixoras-chinesas mal podadas. Uma jabuticabeira muito dadeira cresce vizinha das outras plantas. Fruteia umas três vezes por ano e, se der água todo dia, fruteia muito mais. Quando em frutas, recebe a visita das maritacas esfomeadas. A matracada ecoa e o gato Pisco, de traseiro no cimento e o resto do corpo levantado, admira as penas verdes das barulhentas, que se banqueteiam. Houvesse uma amoreira, ao invés de outra pinheira, haveria mais maritacas, mais admiração do Pisco e eu, se continuasse morando em Venceslau, escreveria um livro chamado “Amoras às Maritacas”. Mas vou-me embora.

 

Não é para Caruvenceslauru que vou.

Gostaria de ir. Muito.

Lá eu seria amigo do rei das maritacas,

voaria com minhas asas verdes,

sim, eu teria asas de maritacas, 

não precisaria de rede para me embalar no ar,

seria admirado pelo Pisco,

subiria nas amoreiras de jabuticabas,

chuparia amoras de jabuticabeiras,

saberia o nome da rua da casa 6.

 

Caruvenceslauruense é quem sou agora.

Mas, em breve, não serei.

 

Presidente Venceslau. Julho, 2022.

 




Anthony Almeida é professor e cronista. Nasceu em Caruaru/PE e reside em Presidente Venceslau/SP, onde leciona. Pesquisa a Geografia Literária, escreve e estuda a crônica brasileira. Atualmente é cronista do Jornal Tribuna Livre e da Revista Mirada. É doutorando em Geografia, pela UFPE, editor adjunto da RUBEM – Revista da Crônica, e colecionador de cartões-postais. Contato: anthonypaalmeida@gmail.com