por Marcela
Güther__
“Subverter
a língua é um desafio, um jeito de superar o risco, de tensionar as estruturas”
Em “Três
Línguas” (Editora Córrego, 100 p.), o segundo livro de Verônica Ramalho
(@trêslinguas.poesia), a escritora paulista utiliza a linguagem (ou língua) e
suas possibilidades estruturais para explorar e enfrentar o sentimento de
angústia, tão comum diante dos desafios contemporâneos. Para isso, brinca com o
absurdo e o surreal por meio de experimentos linguísticos, como jogos de sons,
palavras e significados, além de desafios sobre narração e leitura. A autora
busca, de forma incansável, abordar e manipular as inúmeras possibilidades da
Língua Portuguesa. A obra é uma das
vencedoras do edital ProAC de obras de poesia, promovido pela Secretaria
de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo.
Formada
em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Verônica
dirigiu curtas-metragens e trabalhou por dez anos como cenógrafa para
televisão, teatro e cinema. Atualmente é tradutora, escritora e ministra
oficinas de escrita. Além de “Três línguas”, publicou em 2018 a obra de prosa
poética “A Mulher de Mil Olhos”, também pela editora Córrego. A
escritora atualmente trabalha em um texto que não coube em “Três Línguas”,
que está sendo desenvolvido em outro livro, de prosa.
A autora
lança em setembro a videoaula “Prosa Poética Determinada” sobre
ferramentas de escrita, na qual apresentará sua pesquisa literária que busca
recursos no estilo da prosa poética e nos exercícios da escrita constrangida para
potencializar a experimentação no texto. Acompanhe as novidades via YouTube da
Verônica Ramalho (youtube.com/veronicaramalho).
Confira a
entrevista completa com a Verônica Ramalho:
1 - Por
que trabalhar com o tema da angústia?
A angústia é um material que tenho à mão e exige que eu a manipule. Seu padrão de manifestação sensorial em alguma medida determinou minhas particularidades de escrita: a pausa, o fluxo, a descontinuidade, de forma que a tratar narrativamente é um modo de aprofundar minha investigação.
Naturalmente,
“Três línguas” é sobre angústia, e explora como subtema a relação
corpo-mente-ambiente que ela evoca. De uma certa forma, este livro encerra uma
trilogia composta por um curta metragem e meu primeiro livro, “A Mulher de
Mil Olhos'', de 2018. Nos três, há um percurso angustiante de observação de
si e da paisagem que reverbera no corpo das personagens.
2 - O que
motivou a escrita do livro? Como foi o processo de escrita?
É comum
que as histórias me apareçam como imagens ou frases prontas. A primeira
história do livro foi também a primeira a surgir. Eu estava em uma plateia,
esperando um show começar e pensei a frase “coço a orelha com a língua”, a
repeti algumas vezes para não esquecer e a deixei ecoar. Pouco tempo depois,
sonhei com um jardim com arbustos-língua bem vermelhas que se moviam como
dançarinas presas pela raiz – raiz de arbusto, presa ao chão e raiz de língua,
com as pontas apontando para cima.
Trabalhar
essas imagens é um segundo processo em que entra minha intencionalidade.
Primeiro deixei as imagens se proliferarem sozinhas o máximo que pude até ter
algum material que indicasse um desenvolvimento e então trabalhei um pouco com
escrita automática. Esses primeiros materiais determinaram o assunto, a base da
composição.
A partir
daí, comecei a trabalhar com listas de palavras que queria usar, relacionadas
ao que já tinha. Anotei alguns termos e ampliei o catálogo com o apoio de
dicionários variados, em busca de semelhanças, sonoridades, contrastes, enfim,
peças de jogos com as quais formei frases e fragmentos.
Com
alguns trechos escritos, revi o quadro “O jardim das delícias” de Bosch,
que determinou a estrutura do livro em tríptico (eu sempre gosto de trípticos e
tenho profunda admiração pela divisão em 3 do livro “Tu não te moves de ti”
da Hilst). Então, estavam definidas as narrativas “Deos” que coça a
orelha com a língua e “Jardim” com as línguas arbustivas. Entre elas, a
estrutura me solicitava uma história sobre caos e este livro se chamaria
Júpiter.
Paralelamente
ao desenvolvimento deste livro, minhas leituras e estudos me conduziam a uma
busca por aumentar lacunas na escrita e a necessidade de uma história sobre
caos me encorajou a empreender um texto que não usasse conectores. A isso se
juntou uma imagem antiga de uma mulher lambendo a rampa de acesso a um viaduto
e a história tomou forma quando esbarrou no nome Antígona.
Curiosamente,
“Jardim” cresceu tanto que não cabia mais nesse projeto, sua evolução o
colocou no campo da prosa e decidi desmembrá-lo: mantive o jardim de línguas
junto a “Deos” e “Antígona” neste livro “Três Línguas”. O
texto que não cabia no projeto está sendo desenvolvido em outro livro, de
prosa, esse sim chamado Júpiter, por enquanto.
3 - Quais
são as suas principais influências literárias?
Sou
influenciada pela prosa de Hilda Hilst, de quem a citação “os
sentimentos vastos não têm boca” abre o livro, e por Samuel Beckett,
cuja mecânica reverbera nas operações da linguagem. Devo à poesia experimental
portuguesa, sobretudo à Ana Hatherly, a liberdade para caminhar à borda
da separação entre prosa e poesia.
Hatherly tem um
poema muito especial em que o texto é repetido omitindo palavras. Isso
despertou a pesquisa para o que se tornou “Antígona” [título da segunda
parte de “Três Línguas”]. O uso da repetição em sua obra também me deu
segurança para marcar os ciclos presentes nesse livro.
Outra
grande referência, e essa muito anterior, basilar, foi Marcel Duchamp e
algumas premissas Dadá. Em comum, todos esses nomes guardam um pensamento
matemático ou estrutura numérica levados ao extremo da abstração como
ferramenta criativa.
Também
destaco Hieronymus Bosch, Haroldo de Campos, Georges Perec, Veronica
Stigger, Paul Ricoeur, Roberto Piva, Raul Fiker, Herberto Helder e E. M. de
Melo e Castro.
4 - Que
livros influenciaram diretamente a obra?
“Tu
não te moves de ti”, da Hilda Hilst; “O inominável”, de Samuel
Beckett; “Quadro — O Jardim das Delícias”, de Hieronymus
Bosch; “Um calculador de improbabilidades”, da Ana Hatherly (especificamente
o tríptico “Noite canto-te noite”, “Canto-te” e “Noite Noite”,
diretamente encorajador para a narrativa “Antígona”); e “A máquina do
mundo repensada”, de Haroldo de Campos.
5 - “Três
Línguas” é divido em três partes: Antígona, Deos e Jardim. Como você define
essas narrativas?
Nas três
partes os poemas constroem narrativas distintas, com títulos próprios. A primeira, intitulada “Deos”,
apresenta um ser disforme, que está sozinho em um espaço vasto e vazio. A
criatura vivencia a angústia pela ausência em meio à vastidão, pois não há
destino para onde ir ou permanecer.
A segunda parte, “Antígona”, é uma
adaptação livre e atualizada da obra de Sófocles. No entanto, ao invés de uma
heroína que enfrenta diretamente leis e tradições, nessa jornada há um corpo
que encontra, como companhia e obstáculo, a paisagem urbana. Antígona não
possui irmão ou missão. Pelo contrário, a sua angústia é uma busca sem alvo e o
título da tragédia grega evoca o chamado de responsabilidade. No caso, perante
a vida na cidade contemporânea de caos e doença, para finalizar um processo,
cumprir um rito.
Já a divisão final, “Jardim”, retoma a
realidade sensorial e "lingo-linguística" traçada na primeira parte.
Duas pessoas habitam um jardim absurdo com línguas arbustivas. Há alguns
caminhos para sair do jardim, mas todos eles fazem retornar a ele,
transformando esse espaço a céu aberto em um local de confinamento.
6 - O que delimita essa separação? Como foi o processo de criação?
Elaborei
esse livro como um tríptico, porque gosto de histórias curtas e densas, mas o
tema do livro exigia mais texto e mais tempo para se desenvolver. Então, já
influenciada pelo “Tu não te moves de ti” da Hilst, escolhi fazer
três histórias: o começo, o caos e outro começo e em algum momento me
reencontrei com o “Jardim das Delícias”, de Bosch, um tríptico de
fato, uma obra composta por um painel principal e dois laterais, menores,
articulados, que se dobram sobre o maior, como uma caixa — uma janela? — e
revelam outra imagem pintada às costas desses painéis. Nessa obra, jardim e caos
chamaram meu nome: era esse livro, com três histórias independentes, porém
ligadas, embaralhadas no tempo e que igualmente revelam uma imagem ao serem
fechadas, a capa do livro.
Abre-se o
livro e “Deos”, a primeira narrativa a ser escrita e que norteia o
projeto, apresenta o tema, como no painel principal e maior da obra. A
personagem se transforma no mundo, percebe-se no vazio — uma única criatura em
um espaço sem imagens, sem chão, não há nada, ou só há o nada e sua angústia
existencial pinga e forma o que se pode formar.
Mediados por epígrafes para guiar a leitura, somos arremessados em “Antígona” com o contraste do excesso. No primeiro poema a língua toca/narra cada detalhe de uma escada, a escada que faz a personagem descer ao mundo, alcançá-lo. Seguimos, de novo, uma busca: se “Deos” procurava por alguma coisa, “Antígona” procura entre coisas. Essa busca é a angústia, um anseio por algo que não se vê.
Na outra
ponta, “Jardim” é um ponto de chegada: “Línguas erguidas arfam,
tremem secas a agonia da espera”. Chegamos, mas a busca se mantém. São duas
vozes intercaladas, uma delas, Nenhures, permanece junto às línguas, que
são as grandes plantas do jardim, e outra voz, Algures, tenta sair do jardim em
tentativas sucessivas, ou seja, novas buscas que se estendem.
7 - Você
escreve desde quando? Como começou a escrever?
Aos 8
anos pedi e ganhei uma máquina de escrever, uma Olivetti Lettera 82 verde que
ainda guardo. Comecei copiando os livrinhos que gostava, era mais uma coisa de
escrever mesmo, a maioria das crianças querem contar histórias, eu gostava de
ver o texto surgir.
Nunca
parei de escrever, era necessidade e hábito. Adulta, escrevi alguns roteiros e
começos de textos até encontrar o caminho da “Mulher de mil olhos”.
8 - Você
afirma que enxerga a literatura como experiência. Poderia explicar um pouco?
Invisto em uma linha de comunicação que
explora os recursos textuais para deslocar a imaginação da história narrada
para os efeitos do texto em si. Para mim, a estrutura do texto é a parte mais
importante da escrita. Subverter a língua é um desafio, um jeito de superar o
risco, de tensionar as estruturas.
Há uma
relação interessante entre a leitura e os sentidos. Ler é ver uma palavra
seguida por outra e há uma expectativa na sequência delas, quebrar esse
encadeamento esperado aprofunda a relação com o texto, cria desajustes que uso
como clima para a narrativa que essas palavras geram. Soma-se a isso a relação
da fala e da palavra, da poesia e do recitar, quero dizer, a palavra ainda que
escrita representa sons e construo o texto para que eles se sobressaiam. Temos
uma relação com as coisas muito baseada no tato, e os sons são textura no
texto; ao ler em voz alta, as construções poéticas podem ser sentidas na boca
como tato.
Verônica Ramalho tem dois olhos míopes e uma língua lépida nascidos em Santos, litoral de São Paulo, em uma segunda-feira de tempestade em 1987. Formada em Imagem e Som pela Universidade Federal de São Carlos, dirigiu curtas-metragens e trabalhou por dez anos como cenógrafa para televisão, teatro e cinema. Atualmente é tradutora e escritora. “Três línguas” é seu segundo livro, contemplado pelo edital de fomento ProAC.
Marcela Güther - Sócia e diretora de conteúdo e relações públicas na com.tato. Está à frente do serviço de assessoria literária, auxiliando autores e editoras a divulgarem seus trabalhos na mídia. Já foi redatora de portais de literatura e revisora de livros e publicações literárias. Organiza o clube Leia Mulheres de Joinville (SC) desde 2017.