por Taciana Oliveira__
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Herança
Quando eu morrer
abra o peito da cidade
mergulhe-me lá dentro
deixe a carne se vestir de concreto
é certo
meu sangue
será soprado nos grafites
meus ossos
serão a cura da patologia dos edifícios
quando eu morrer, faça isso
e viverei para sempre nas vielas dos seus olhos
eco
gosto da ideia do verso com
vida
própria
que funciona independente
da engenharia da poesia
imagino-o flanando
livre
se reproduzindo
em mini-versos
como
coelhos psicodélicos
brotando nos muros como
unha de gato
ou talvez como um disco riscado
se repetindo, se autossabotando
transbordando
nas bocas de lobo:
inundação poética
num sábado sóbrio
Renasço
no largo Santa Cecília
manhã de abril. abro janela E caderno
o poema sai como um míssil:
estilhaços de palavras me penetram E enfeitiçam
a inspiração peçonhenta colore prédios desbotados
um morador de rua se cobre com as notícias de ontem
sentimentos se prostituem na esquina do sistema circulatório
da cidade
buzinas, sirenes, gritos se aglomeram num único som.
sim, o som da cidade bela E desgraçada acontecendo;
a cidade que abriga E embriaga todas as estações E
nasce E morre, nasce E morre, nasce E morre
(todo dia)
uma certeza que tenho,
é que o fim do mundo começou aqui:
onde o caos dita a cadência da decadência,
na cidade em que a felicidade é paga
daqui também vejo a catedral:
ensolarada, amarela, plácida
escuto as badaladas do meio-dia E das seis da tarde
badaladas que
despertam a lembrança de minha solidão inevitável
badaladas
que se misturam ao som da cidade acontecendo
badaladas que evocam o espírito de
Baudelaire
me resta tapar os ouvidos e acender um cigarro no pôr do
sol,
seguir cego a namorar a cidade E
preencher o caderno de impossíveis.
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Taciana Oliveira –
Editora das revistas Laudelinas e Mirada e do Selo Editorial Mirada. Cineasta e
comunicóloga. Na vitrolinha não cansa de
ouvir os versos de Patti Smith: I'm dancing barefoot heading for a spin.
Some strange music draws me in…