por Rafael Silva__
Era
Caymmi quem cantava, a Alice, na noite cálida de Fortaleza, sobre as areias de
Iracema: “Nada me impede de viver um grande amor na minha cabeça, pedir pra eu
não amar, é o mesmo que pedir que eu desapareça. Pela primeira vez, tudo o que
eu preciso é do meu pensamento...”.
Um
casal anômalo, noturno, destoante, assistia ao show pertinho do palco
infiltrado em meio aos normais bem-vestidos, descidos dos seus prédios ou vindo
debaixo de seus tetos.
—
Vamos sair daqui. ‒ disse o homem.
—
O show acabou de começar. ‒ respondeu ela, melosa, abraçando-o pela cintura.
Ficaram.
Beijaram-se. Dançaram e riram com sorriso de dentes faltantes no show de uma
Caymmi, gratuito!, na praia. Amaram-se como normais. E se a pobreza faz gente
desaparecer, ah, o amor faz acender e isso, isso a mão invisível do homem
acocorado ao longe não pode arrancar e nem lhes pedir para não amar, já que não
conjugam bem o verbo comer ou viver.
Se
teve algo bonito nessa noite foi ver o casal anômalo, despenteado e feliz,
apesar dos pesares, recebendo em sua própria casa, cujo teto é céu, uma Caymmi
e fiquei tão satisfeito, porque donde se imagina, que na miséria cotidiana, o
casal descalçado, de roupas rasgadas, poderia adentrar e compartilhar chão com
as peles limpas dos banhados? Mas se a pobreza faz gente parecer bicho, ah, a
cultura chega e nos faz lembrar que de carne e osso, sangue e amor, os pobres
também são feitos.
Queria
que Caymmi visse a graça que é para alguns um show gratuito. Queria que os
bocas-malditas, medianos, percebessem a importância de investimento na cultura
desse país em ruínas e como que cultura (de graça!) é um sopro de vida nas
almas penadas desse lugar. Mas tudo o que temos é uma classe média cafona e uma
elite fascista que cospe merda quando o assunto é cultura e caga desaforos
quando ela é de graça e precisam compartilhá-la com a “gentinha”, quando não
pagam suas privês. E como se não bastasse, eles se sentam nas cadeiras que nos
governam e assinam nosso atestado de óbito com canetas bic.
Queria
que a outros casais pobres, maltrapilhos, descalços e descabelados fossem lhes
dado oportunidades, comida, roupas e banho e, por que não?!, mais shows
gratuitos de Caymmis. E no alto de meus delírios gostaria, sim!, que aquele
casal tivesse gritado aos prédios altos da orla: “Foi em minha praia que Caymmi
se achegou, não no teu ap!”. Mas é bobagem minha. Não precisam disso.
Queria
que Caymmi, a neta, ao menos tivesse entendido a grande beleza e importância
que foi para ela ter adentrado na casa daquele casal, pois quando ela virou as
costas, o homem e a mulher permaneceram e dormiram, agarradinhos, sobre sua
cama fina feita de lona, sob a luz das estrelas, ao lado dos banheiros químicos
montados para receber os excrementos dos que desceram de seus privilégios.
Penso,
se dessa vez, pela primeira vez, tudo o que esse casal precisou, assim como
cantava Alice, foi do próprio pensamento e se imaginaram normais e anfitriões,
gentes e amantes, em meio aos convivas anormais e a música ao vivo, ressoante.
Era Caymmi quem cantava na casa dos anônimos que a recebia.