Padre nosso que estais no fim | Muriel Cristina Vieira

por Muriel Cristina Vieira__




Se fecho os olhos por alguns minutos, posso capturar o ambiente ao meu redor. O som metálico das pás velhas do ventilador – mal fazem o ar girar – os carros passando na rua, o tecido da cortina arranhando a luminária empoeirada, presa na mesa de estudos que apoia as roupas por passar.


Sinto que vou enlouquecer. 


O silêncio, por mais estanho que pareça, tem um som próprio. Não é só o velho jargão "o som do silêncio"...

Não, ele tem mesmo o seu barulho. É como o peso do ar quente: você não vê nada, mal sente a pressão no corpo, mas ele está lá, envolvendo, cozinhando. É o silêncio, ele se parece com um ruído surdo que pressiona os tímpanos, dá uma certa dor de cabeça.


Eu deveria estar dormindo. Gostaria de estar. Mas tenho medo dos meus sonhos.


Digo para mim mesma que é bobagem, sou um adulto, e daí se tiver um sonho ruim? Vou acordar. Tem quem nunca acorde.


Acontece que nos últimos dias pareço ter regredido de idade. Sinto medo de tudo como uma criança. Como a criança que se escondia atrás de uma porta velha e fingia que ali era seu esconderijo, que poderia viver ali pra sempre. Porque ali...


...


Poxa vida, não gosto de nada em quando fui criança. Vivi com uma angústia que nunca deixou de ser. Conforme cresci, ela tomou forma, virou uma palavra, um texto, um rosto, um nome. Ela ganhou contornos como um fantasma que assume diante da gente a forma daquilo que mais nos afeta, em cada momento. Mas a verdade é que essa angústia nasceu comigo, no fundo do meu peito, e já não sou capaz de lembrar de mim sem ela.


Quando eu me perco, propositalmente, nos devaneios de um lugar paradisíaco, imaginado, tem sempre alguns elementos que surgem na minha paisagem, ainda que eu saiba que jamais os vi anteriormente.


É um campo florido, um sol quentinho mas sem queimar, a imensidão de um abismo. Eu sonho em viver para sempre em uma tarde de outono amena, com cheiro de terra e a sensação de que me refugiei em um lugar onde o tempo não nos encontra, onde a brevidade, a ânsia, não me alcança mais.


Vivi a vida toda com muita pressa e não sei do que. Caminho e caminho mas percebo que nunca chego, e já começo a desconfiar que não há lugar para se chegar (os benefícios do amadurecimento).


Mas essa angústia, ela não desvanece conforme eu conheço a vida, de acordo com a minha consciência da ausência e da inconstância. Pelo contrário, ela me apressa. Me faz sentir que a inexistência da chegada me condena a uma existência inteira de partidas. Um perambular eterno e solitário sem jamais chegar. Esse é o meu pesadelo.


Nele, vivo muitas cenas diferentes, revejo familiares, amigos, revivo perdas e experimentos realidades menos oníricas do que os sonhos deveriam ser. São sempre violentas, agressivas, cheias de confusão e dor. Acordo como se tivesse perdido a batalha mais significativa de todas e saber que foi uma ilusão não retira da minha boca o gosto amargo da tristeza. Cadê meu pai? Onde está qualquer quem que me nine, para que eu não precise mais mergulhar em um sono de morte atrás desse amor? Não sabemos. Nunca soube como é viver com a certeza de que sempre haveria aconchego. Para mim, a certeza sempre foi o Abandono. 


Menos do silêncio, boxeando meus ouvidos, incômodo. Mas, confesso, eu me refúgio nele. Quando o silêncio penetra meus ouvidos com toda a sua força eu me sinto viva, desperta, e o meu desespero se retesa um bocadinho.


É na manhã seguinte, embriagada pelo sono que de tanto demorar a vir, se atrasou e perdeu o bonde, que olho as luzes da manhã que nasce, nesse estranho e quente inverno, e abano as chamas que me mantém ereta. Eu sorrio para a vida, mais uma vez, como o fiz ontem e a um mês atrás e quando tinha sete anos e, ao tentar correr atrás da perua escolar, tropecei na frente de todos e arranhei meu rosto inteiro. É disso que se trata, levantar e andar, não apenas sobreviver mas teimar, teimar muito e jamais recuar.


Exceto nessas noites, em que a angústia ressurge, entre as memorias das bonecas, e do cinzeiro feito de barro cozido, e do macarrão com carne moída...quando noto que a angústia sempre foi a falta que eu senti, e qualquer migalha faz meu coração de menina implorar por esse lugar familiar  inóspito que eu jamais ocupei de verdade.


Por favor. Por favor. Me responda. Me escute. Por favor. Não vá embora de novo.


Sou eu quem penso isso, enrolada nos lençóis da cama. Também era eu, a anos atrás, aguardando madrugada adentro uma ligação que me salvasse da certeza de que eu havia sido deixada para o próximo final de semana.


Não tem jeito. Não é sobre perdão, é sobre saudade. É sobre passar uma vida inteira desejando que o amor chegue, que alguém se dê conta de que você não está lá e procure atrás da velha porta de madeira.


É sobre viver dizendo a si mesma que não precisa desse amor, que melhor mesmo era que morresse. Mas aguardar, todo santo dia, um milagre.


E quando uma fresta de luz entra.


Que medo.


A esperança nos tira o sono mais do que a desilusão. Isso porque a segunda nos exige resiliência, mas a primeira, por sua vez, nos cobra fortaleza.


Hoje, ouvindo o girar do ventilador quebrado, tenho tanto medo de dormir quanto o tenho de viver.











Muriel Cristina Vieira
- "Graduada em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Eflch/Unifesp), onde é integrante do Núcleo de Estudos Ibéricos e do Centro de Pesquisa em Probabilismo e Retórica Jurídica (CEPPRO), com ênfase em História Moderna e História da Justiça e do Direito. Atualmente, é pesquisadora do Núcleo Humanismo e Empresa (NUHEM) no ISE Business School."