por Yvonne Miller__
— Moça, aqui é o final da fila?
— Não, continua depois da esquina.
Ele deu uma olhada.
— Oxe, tem nem perigo. Vou esperar aqui mermo.
O jovem se encostou na coluna metade-branca-metade-azul e cruzou os braços.
— Marré muita gente mermo! ... De onde foi que saiu esse povo todo? ... Eu hein! ... Calor da mulesta! ... A minina lá vai já passá mal, qué vê? ... Ó dona Dalva! Liga o ar-condicionado! ... Dona Dalva!!!
— Te acalma, Gabriel. Não pode ficar gritando aqui, não — interveio um homem da mesma fila da moça. — E tu já viu ar-condicionado prestando nesta escola? Por isso precisa votar. — Ele ajeitou o boné vermelho.
— Mas óia! — Um camisa-amarela parou no meio do trajeto para sua fila e encarou o jovem. — O que tu tá fazendo aqui, Gabriel? Tu vota é em São Lourenço.
O moço logo se alterou:
— Voto não, eu voto aqui! É aqui que eu voto, eu sou daqui!!
— É não, rapaz. É lá em São Lourenço que tu tem que ir.
— É não, é não! — O jovem olhou nervoso à sua volta.
— Vocês estão criando confusão, é? — Dona Dalva chegando. — Pois podem continuar, que vou chamar a polícia agora.
O policial chegou com passo grave e voz mansa. Olhou do jovem para o camisa-amarela e do camisa-amarela para o boné-vermelho:
— Se não se acalmarem, vou levar todos três.
— Mas eu não fiz nada! — reclamou o camisa-amarela. — Estou querendo ajudar. É que esse moço aqui vota em São Lourenço.
Agora as pessoas da plateia, enfileiradas em frente às portas da pequena escola do interior, também levantaram suas vozes:
— Ele vota em São Lourenço!
— Ele mora em São Lourenço!
— Ele precisa ir pra São Lourenço!
— E é? — O policial franziu a testa. — E o que tu tá fazendo aqui, rapaz? Vamos comigo.
Levou o jovem, e as pessoas, autocomplacentes por terem ajudado ao pobre confuso, voltaram a prestar atenção no andamento das filas, a cumprimentar vizinhos que passavam ao lado, a tirar onda com um ou outro pelas cores de roupas e enfeites.
— Vamo tirar uma selfie. — O camisa-amarela se aproximou do boné-vermelho e levantou o celular. — Sorria, é 22!
— É 22 nada, rapaz! Té doido, é? — O boné-vermelho se desviou da foto.
Dona Dalva voltou para acompanhar o camisa-amarela para sua fila.
Conforme as pessoas iam saindo, a moça ia chegando mais perto da entrada. Pela janela conseguia ver o interior da pequena sala metade-azul-metade-branca, a lousa, alguns desenhos infantis na parede, a bancada com os mesários, a cabine de votação. Com os dedos umedecidos procurou mais uma vez o papel com os nomes e números no bolso. Eram suas primeiras eleições. Uma pessoa saiu, outra entrou, e agora ela seria a próxima. Deu mais um passo e seus olhos caíram sobre a lista com os nomes dos alunos, pregada na porta. Fez uma contagem rápida e sorriu. De 19 alunos, 13 eram Da Silva.
Nesse momento, o policial voltou com Gabriel.
— Ele vota aqui mesmo.
E, para evitar mais confusão, enfiou o jovem no início da fila, na frente da moça.
Espertinho, esse Gabriel.
Yvonne Miller nasceu na cidade de Berlim em 1985, mas mora, namora e se demora no Nordeste do Brasil desde 2017. Escreve contos, crônicas e literatura infantil em alemão, espanhol e português. Tem textos publicados em coletâneas, como Paginário (Aliás Editora, 2018), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck Editora, 2021). É cronista do coletivo sócio-literário @bora_cronicar, do blog Escritor Brasileiro e assina a coluna “Isso dá uma crônica” do ColetiveArts. Além de ficcionista é autora e redatora de livros escolares. É uma das organizadoras da coletânea de contos cearenses “Quando a maré encher” (Selo Mirada, 2021). Instagram: @yvonnemiller_escritora