Trecho do romance O órfão na estante, de Ricardo Hirata

 por Ricardo Hirata__






— Professora! Para quem entrego a rosa no teatro

do Dia das Mães?

— A sua flor será branca, querido. Não precisa descer do palco.

 

Acharam por bem que eu voltasse à escola um dia após o enterro. Era final de semana e segunda-feira tem aula. Que dia? Que estação? Outono. A manhã está fria e a primeira atividade é educação física. Os alunos se assentam sobre o orvalho da grama; eu me esqueci do calção e a roupa ficará úmida pelo resto do dia.

 

Naquele campo de futebol, campo de provas à minha timidez, alguém sabia do que havia me acontecido? De onde eu vinha, quando cheguei? Sentei ao lado do meu melhor amigo. Ele sabia? Nos olhos dele, um véu me disse oi, e aí? mas sem palavras. Seriam meus, os olhos velados? Não nos falamos mais nada. O apito do professor deu início ao exercício. Uma espécie de névoa recobria as pessoas.

 

Era primavera, porque no verão iríamos à praia com minhas tias maternas. Levantamos para correr ao redor do campo. Duas voltas, sem preguiça. Uma dorzinha no órgão que, anos depois descobri, se chama baço, foi causada pela contração dos vasos em dias frios, ou então pela falta de ar. Corri como se nada tivesse me acontecido, como um menino-humanoide, como se o mundo ainda fosse isso mesmo. Uma bola girando à minha frente, rápida demais. Os atacantes, outros zagueiros, jogadores me chamam a atenção. Ei, acorda!

 

Meninos passam correndo por mim com a bola nas mãos, celebram o gol, a vitória. Eu, um jogadorzinho de chumbo. O ar tem, dentro dele, outro vazio.Fim de jogo, fim das aulas, fim do ano. Nenhuma palavra do técnico, da professora, da diretora. Até a próxima série.

 

 

Vivemos num condomínio de luxo nos arredores da metrópole. Mamãe partiu no mesmo ano em que nos mudamos para cá, a casa sobre as nuvens. Mistura de paraíso e pesadelo. Em vinte anos, nenhum dos altos eucaliptos permanecerá de pé. O metro quadrado irá valer trinta vezes o valor atual ou mais. Casas de todos os padrões arquitetônicos tocarão os céus. O estilo da moda: neoclássico com colunas gregas nas fachadas. Minha residência será considerada meio retrô, meio cafona, e um comprador em potencial custará a aparecer. Durante a construção, foi preciso dinamitar uma imensa rocha subterrânea; um bloqueio às fundações. Viveremos aqui por apenas três anos. Um muro ainda mais alto circundará o empreendimento imobiliário. Ao redor das casas, cercas, grades ou portões continuarão a inexistir. A portaria, devidamente informatizada, armazenará os vídeos das câmeras em nuvens cyber-vigilantes. Nas cancelas armadas, visitantes terão os rostos e digitais armazenados pela eternidade. Carros da segurança passam em frente a nós, as crianças, e acenam regularmente. Não. Os seguranças não irão mais acenar, porque a película escura nas janelas dos blindados dispensa as aparências. Até então, o ar é inodoro. Mas, sem dúvida alguma, o rio que corre ao lado do condomínio, esgoto a céu aberto, herdeiro dos dejetos da metrópole, jamais estará tão poluído. Nos dias quentes, uma nuvem fétida de borracha queimada e ardências químicas recheada de enxames de pernilongos irá invadir o brilho dos mármores, as noites climatizadas e o sono real dos ansiolíticos. Ainda ontem, despertei com a cara toda picada; riram e me apontaram os dedos hoje na escola.

 

A maior dor do mundo é perder um filho. Em Tudo sobre minha mãe, Almodóvar ficcionaliza o instante; um atropelamento. Mi hijo! Mi hijo! Mi hijo! Não. Foi assim: Hijo mio! Hijo mio! Hijo mio! Que inveja, lhe restaram as palavras.

 

— E as mães dos órfãos, para onde vão?

— (...)

 

Como não somos religiosos, nunca me perguntei para onde teria ido minha mãe, como ela receberia a notícia de sua própria morte ou se o seu primeiro pensamento seria os filhos. Existe algum lugar especial, nos céus, de onde elas continuam a zelar pelos rebentos? Ou vagam entre os mundos feito almas penadas, aos prantos. Você viu meus filhos, por onde eles foram? Um menino meio japonês, de cabelo assim, encaracolado? Uma menina de cabelo liso e comprido, mestiça, eles passaram por aqui? Nem as mitologias se interessaram por elas, as mães mortas antes da hora.

 

Enquanto vivemos na casa-condomínio, eu e minha irmã estudamos na mesma escola; ela, quatro séries à minha frente. Pouco nos vemos durante os intervalos ou no recreio. Uma rachadura se aprofundará entre nós, sem fazer barulho, e pouco nos olharemos até o nascimento de nossos filhos. Será quando nos reencontramos com nossos pais; ela, mãe de meus sobrinhos; e eu, pai dos dela. Continuamos sem conseguir nos abrir muito bem um com o outro. Após a guerra, crescemos apartados, falando pouco; conversas de sobrevivência.

 

Olha lá, mana, são rãs! Saibam que irão todas desaparecer em trinta anos, extintas no condomínio. Numa noite, saí das ruínas para caçar. Espera! Como vamos cozinhar? Não sobrou nem uma panela, fogão, nada. Mas acontece; eram sapos. Pedra. Tijolo. Paulada. Estranhamentos. Órfãos, vejam bem, além de vítimas, também podem ser cruéis.

 

A orfandade foi um intervalo-infinito em nossas vidas. Espaço-tempo entre a morte da mãe e o nascimento dos pais. Posso dizer: ao nascer o meu primeiro filho, me reencontrei com um desconhecido, como a um parente que retorna da guerra. Estranha familiaridade entre o pai-Ricardo e o então falecido pai do Ricardo.

 

Desde o primeiro dia de aula, sempre que posso vou buscá-los no horário da saída.







Ricardo Hirata
- Psicanalista e escritor. Psicoterapeuta de casal, família e grupos. Psicólogo clínico com especialização pelo CEP-SP e Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Ciências da Religião pela PUC-SP. Professor no Curso de Formação em Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos. Coordenador dos Laboratórios de Escrita Psicanalítica (CEP-SP). Consultor na LITERACURA, empresa voltada para a saúde mental em instituições. Membro do núcleo artístico Epidauro. Autor do romance de autoficção "O Órfão na Estante". Instagram: @rica.hirata