Trechos do livro Mulher de palavra, de Eliane de Christo

 por Eliane Christo__








P. 16-19.

Se a pergunta fundante da minha pesquisa levou tempo para ser construída, a palavra do poeta e a musicalidade da prosa perseveraram em mim. E é a PALAVRA que me dá a continência necessária, suporte de existência, muito provavelmente pelo lugar de afeto em que a guardo. Nos primeiros anos de infância, não fui apresentada a livros em função da vida precária no sítio. A casa era bem simples, foi meu avô quem a construiu; esse era seu ofício. Eu nasci ali, de parto natural, tendo como parteira minha avó. Nasci ao lado de um poço artesiano. Era desse poço a água para beber, cozinhar, tomar banho, lavar roupa. Também vinha dele a água para regar as plantas e flores cultivadas pela minha avó, assim como aquela usada nas benzeduras. Este sítio ficava num lugar chamado Marmeleiro. Não havia luz, os vagalumes eram os “postes” a iluminar a noite.

Mas tive a sorte de ter essa avó que, para além de benzedeira, era uma exímia contadora de histórias, de causos e de folclores. Projetadas na parede pela luz produzida pelo lampião a gás, as sombras davam mais emoção às histórias que vinham da voz da minha avó. O seu dizer nas histórias e nas rezas no ato do benzimento, tinham sabor de cuidado e produziam em mim uma espécie de comoção, sobretudo os benzimentos, que eu testemunhava com frequência. Minha avó, ainda que articulasse palavras que não eram suas, mitigava a dor que podia ser mitigada, reduzindo um sofrimento.

Olhando para trás, só me dou conta agora de que fui testemunha de uma eficácia simbólica* desses ritos, nos quais, como está descrita por Lévi-Strauss, “o xamã fornece à sua paciente uma linguagem na qual podem ser imediatamente expressos estados não-formulados, e de outro modo informuláveis”.

Um desses benzimentos era a “costura”. Com pedaço de pano, agulha e linha nova nas mãos, o bem dizer da minha avó iniciava com o nome da pessoa doente, seguido da pergunta; “o que é que eu coso?”. Esse pano era colocado na parte do corpo da qual o doente se queixava. Após a pergunta, a pessoa recitava três vezes: “carne rendida, osso quebrado, nervo torcido”. Na sequência, minha avó continuava: “Esse mesmo eu benzo e coso, carne quebrada que se solda, nervo torto que se endireita, osso rendido que volte ao seu lugar”.

O pano, simulando a parte do corpo na qual o doente sentia dor, ia sendo marcado pela linha e pela fala proferida. A linha com a agulha “escrevia” no pano. Essa “escrita” era constituída por mais ou menos nós, a depender da gravidade do caso.

Ao final de três dias de benzimento, os nós ganhavam caráter de alinhavo e a pessoa dizia sentir-se bem novamente. No segundo capítulo discuto mais essa questão. Esse é um exemplo de tantos outros que me recordo. Nesse sentido, a cura xamânica, diz Lévi-Strauss, se situa a meio caminho entre a medicina orgânica e as terapêuticas psicológicas como a psicanálise. “Sua originalidade, está em aplicar a desordens orgânicas um método muito próximo da psicanálise”, atesta.


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Mais tarde, aos seis anos, quando entrei escondida pelo portão da escola durante o recreio e me deparei, na sala de aula, com um quadro negro repleto de inscrições desconhecidas até então, encontrei um mundo novo, pleno de letras desenhadas. Esse ato subversivo me proporcionou o contato com as palavras escritas. Primeiro a minha avó, com a sua transmissão oral e a recorrente repetição das rezas; e depois as professoras, na alfabetização, foram figuras que escreveram em mim o gosto pelas muitas dimensões nas quais a palavra se insere.

O jornalismo veio como profissão, na qual permaneci por cerca de vinte anos – em paralelo, estive envolvida em movimentos sociais, particularmente aqueles voltados para meninos e meninas em situação de rua –, e a palavra e as histórias de pessoas sempre foram meu foco de interesse, seja nas entrevistas jornalísticas, seja no convívio com as crianças e adolescentes. Muito provavelmente porque o silenciamento me dói, tomei gosto por abrir palavras e fazê-las circular.


P. 20-21


O ENCONTRO COM CLARICE


Conheci Clarice Lispector nesse contexto. Uma amiga, ao ler alguns textos meus isolados, que eu escrevia e deixava soltos pela casa, me assegurou que eu não podia passar por aquele momento sem um encontro com Clarice, escritora que eu ainda não conhecia. Para ela havia certa ressonância entre a minha escrita (naquele momento) e a de Clarice. Assim, me deu Água Viva, livro que tomei nos braços como quem abraça alguém que acolhe nosso corpo em situação de fragilidade. Foi desse modo que as páginas do livro me envolveram para sempre, ocupando lugar concreto e subjetivo em minha vida.

Costumo dizer que foi Clarice a minha primeira analista,pois era a única que, com seus textos doídos, permitia que eu me entendesse melhor. Ela me garantia expressão por meio da sua escrita, no enredo de suas histórias, na busca alucinada de suas personagens pela plenitude. Hoje, quando me perguntam qual é a minha linha na psicanálise, respondo de pronto, ainda que em tom de graça: clariceana.

Brotou das palavras dessa autora o interesse pelos meandros da alma humana que me conduziu ao universo das Psis e também me impulsionou a estudar mais sobre a presença feminina na história. Eu elegia, assim, a mulher, a criação literária, o desamparo, a infância, a psiquê humana, como temas caros. Clarice era essa mulher que me mostrava a profundidade da alma e que, ao trazer a sua Macabéa (mulher nordestina e órfã) em A Hora da estrela, revelava com esse escrito o avesso e a realidade da dor. Conheci meninas “Macabéas” em situação de rua. 


P. 95-96


As benzedeiras estão radicalmente vivas para o mundo e apresentam a perspectiva de “cuidar da vida é nossa missão”, lema do Movimento Aprendizes da Sabedoria (MASA) e que está presente em suas camisetas, bolsas, cadernos, bandeiras e nos gritos de ordem que abrem e encerrar encontros de benzedeiras. Ao longo de suas vidas elas têm como práticas o cultivo, a produção e o cuidado da vida de humanos e não humanos – plantas, animais, águas e pessoas.


Como se vê, as benzedeiras estão aí sustentando sua posição junto à comunidade e, diga-se, até mesmo articuladas num movimento, sustentando a tradição oral e crenças em seu poder. Esse saber-fazer, reproduzido e reinventado, é um fio que atravessa os tempos e não sucumbe aos avanços do conhecimento formal e necessário da ciência. Prática que pode ser adquirida ou recebida, a benzedura tem na sua centralidade a figura feminina e encontra na palavra o elemento que alinhava, costura corpos e entretece essas mulheres em rede. Nota-se no ambiente da benzedura um espaço de sociabilidade e de trocas entre elas. 

Parto da minha experiência enquanto neta de benzedeira. Ela realizou o parto do meu nascimento, embora não fosse parteira. Teve participação em outros como ajudante, além de conduzir os chamados “batizados em casa”, sobretudo quando os padres se negavam a realizar o batismo nos casos em que a criança era filha ou filho de pais não casados na igreja católica. Na linhagem feminina da minha família, nem minha mãe, nem minhas tias fizeram parte dessa rede. Em suas trajetórias, encontraram no saber médico/farmacêutico “respostas” para os males que lhe afetavam. Este livro recobre, em alguma medida, os efeitos (poéticos) que as rezas de minha avó deixaram marcados em mim.

Uma breve digressão antes de “escutar” as rezas. Apesar de suas antepassadas praticarem a benzedura, para a minha avó esse “dom” irrompeu, não foi exatamente uma escolha. Ocorreu num dia de forte temporal, “parecia que o mundo ia acabar”. Foi ali que recebeu seu “chamado”, que lhe “revelou a sua condição”, à moda de Lévi-Strauss. 


P. 59


Diante do corpo da sua paciente, “mulher histérica”, Freud seria uma espécie de exorcista a identificar as marcas demoníacas/sintomáticas, além de fazê-las falar, de modo a libertar suas carnes do estranho habitante. No encontro com Freud e sua técnica, algumas mulheres “possuídas” pela histeria encontraram espaço de fala e de subjetivação, e, na expressão dos seus sintomas, uma leitura possível e singular. A considerar o fato de que a psicanálise estava nascendo e a adoção da escrita clínica dos relatos, a arte literária, na constituição de sua teoria e técnica, é manancial incontestável. Esse toque literário marca o “corpo” psicanalítico presente na leitura do corpo da “mulher histérica” que é texto/sintoma e os Estudos sobre a histeria texto/escrito que é corpo de investigação.

As mulheres, pacientes de Freud, com seus nomes ocultos e suas feições – só a ele revelados na ocasião – emanam narrativas e conduzem o leitor para dentro das suas intimidades. Assim, as histórias clínicas podem ser lidas como ficções, realidades inventadas, mas que, uma vez inventadas, passam a existir. Da sua interlocução com a arte, Freud privilegiou a literatura como um campo do qual tomou emprestadas metáforas para deixar mais robusta a sua discussão sobre a relação do homem com a fantasia e a loucura.






Psicanalista pelo Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP),
Eliane de Christo é jornalista pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), mestre em educação pela USF e doutora em linguística pela PUC-SP. A autora tem grande interesse por pessoas e suas histórias e concorda com Clarice Lispector quando a escritora diz: “a palavra é a minha quarta dimensão”. Foto do Perfil: Eliana Annabogaciovas.