Um conto do livro A Casa do Posto, de Larissa Campos

 por Larissa Campos__





Rolê no fusca verde


Foi a primeira vez, desde que chegamos ali, que as pessoas pararam para olhar a ação de uma mulher. Aquele mundo era masculino demais. As poucas mulheres faziam muito, mas quase ninguém reparava. Limpavam, cozinhavam, costuravam, cuidavam dos filhos e da casa.


Durante os anos no posto, minha mãe e minha avó paterna foram as referências femininas que me nutriram. Vovó, uma polaca esperta e criativa, operava milagres na cozinha. Quando vejo minha despensa cheia e não consigo pensar no que fazer para comer, me lembro das vezes em que a polaca parava diante da geladeira praticamente vazia e uma hora depois nos servia um verdadeiro banquete, simples e saboroso. Só podia ser magia, não tinha outra explicação. Mãe e vó foram as minhas primeiras professoras de magia.


Quando nos mudamos para o posto, meu pai já havia comprado um fusca verde bem clarinho, ano 82, que transportou minha família até aquele mundo. Papai sempre foi chato com carros. Nas tardes de domingo, estacionava o fusca em frente à casa-escritório, abria as duas portas, tirava os tapetes e começava o ritual da limpeza. Logo estavam todos a postos: mangueira, escovas, aspirador de pó, panos, detergente, sabão próprio para lavar o veículo e uns produtos que ele comprava para deixar o possante com cheiro de novo. O serviço durava a tarde toda, acompanhado pela narração veloz de algum jogo de futebol. 


Minha mãe tinha muita simpatia pelo fusquinha. Dava para perceber pela forma como ela olhava para ele, como falava dele. Certamente era um caso de amor. Um dia, enquanto tomávamos chimarrão, ela confessou:


— Meu sonho é dirigir esse carro. 


Minha mãe ainda não sabia dirigir, portanto o primeiro passo para a realização do sonho seria que ela adquirisse uma nova habilidade: ser motorista. Nas primeiras vezes em que ela tocou no assunto, meu pai desconversou. 


— Não vejo necessidade, Maria. Se for preciso dirigir na rodovia, eu mesmo vou. É perigoso dirigir por aqui. 


— Eu sei que é perigoso, mas pode ser muito útil que eu aprenda. 



Ela poderia dizer simplesmente da vontade de aprender a dirigir, mas o argumento não seria levado em conta. Como estratégia, tentou mostrar as utilidades que aquele conhecimento proporcionaria; e para dar um empurrãozinho, decidi criar uma força-tarefa. O objetivo era convencer meu pai a dar aulas de direção para mamãe, mesmo que fosse uma vez por semana. Obstinadas, eu e minha irmã, Vitória, fizemos um combinado: todos os dias, uma de nós aproveitaria o momento do almoço, em que a família se reunia, para lançar a pergunta:


— Quando você vai ensinar a mamãe a dirigir?


E assim fizemos por mais de um mês, intercalando a pergunta incômoda. Às vezes, papai tirava os olhos do prato e nos encarava. Em seguida, voltava a comer como se nada tivesse acontecido. Simplesmente ignorava. Outras vezes, ele trazia um assunto diferente à mesa. “Tem previsão de chuva forte pra hoje”. Ao fim da frase, dava um risinho sem graça e voltava a comer. Enquanto isso, os olhares maternos de aprovação chegavam até nós. 


Durante um mês, ele fugiu da pergunta, até não aguentar mais.


— Está bem! Teremos nossas aulas nas manhãs de domingo.


A notícia fez brotar sorrisos em nossos rostos, e como não podíamos conter a alegria, nos levantamos e dançamos ao redor da mesa de jantar, batendo palmas e sacudindo os braços. Enquanto isso, mamãe retirava as panelas da mesa com cara de satisfação.


Em todas as aulas, a mesma rotina. Vitória e eu pegávamos as cadeiras de fio e ficávamos sentadas em frente à casa-escritório, enquanto o fusca passava de um lado para o outro, dentro do pátio do posto. Na primeira, contamos as vezes em que o veículo apagou: foram sete. Ao fim da aula, mamãe trazia um sorriso amarelo. As linhas de suor escorriam pela testa.


Com quatro aulas, a evolução era visível. Minha mãe estava mais segura ao volante, não deixava o carro apagar, e as temidas rampas não faziam sua testa suar. A cada fim de aula, a plateia de duas pessoas aplaudia de pé, com direito a gritos e assobios. Aos poucos, as lições de direção transformavam a família.


O ponto central da mudança foi minha mãe, que tomou uma injeção de autoconfiança a partir daquelas aulas e da nova habilidade: motorista. Era como se ela tivesse se tornado motorista de si. Mas a mudança também nos pegou em cheio, abrindo horizontes para o ser mulher. Ao contrário do que a realidade masculina do posto de gasolina dizia, dirigir era coisa de mulher, assim como administrar, trabalhar, pagar as contas, tomar decisões e dar ordens. 


Mas a missão ainda não estava concluída. Quando ela dizia que sonhava dirigir o fusca, eu sabia se tratar de algo para fazer sozinha, sem a companhia do meu pai no banco do passageiro, ao lado dela. Isso precisava acontecer para que a experiência fosse completa, marcando para sempre a vida. Num domingo, nós três acordamos mais cedo do que de costume: Vitória, mamãe e eu. O posto já estava movimentado, com carretas e carros sendo abastecidos. Chegava a hora do grand finale.


O plano seria colocado em ação antes que meu pai acordasse. De banho tomado, vestindo nossas melhores roupas, nos preparamos para uma volta de carro que jamais esqueceríamos. Mamãe nos colocou no banco de trás, regulou e prendeu os cintos de segurança aos nossos corpos pequenos e depois entrou no carro, colocou o cinto, os óculos de sol e ligou o motor. Segura do que estava fazendo, ela passeava conosco pelo pátio do posto e volta e meia acenava para um conhecido ou outro. Minha irmã e eu nos esticávamos para ver pela janela; no sorriso de Vitória eu me encontrava, ela se encontrava no meu, e a magia acontecia.


Meu pai sentiu nossa falta quando acordou e imediatamente correu para fora. Não viu o fusca e se desesperou. Olhava para os funcionários e gritava:


— Onde elas estão? Onde está o carro?


— Calma, chefe! Estão ali, bem felizes passeando pelo posto — comunicou o frentista e apontou o fusquinha verde que transitava entre os caminhões. A cara de surpresa do meu pai dizia tudo. 


Quando o fusca parou e descemos dele, várias pessoas, incluindo os frentistas, demais funcionários do posto e minha avó polaca, se aproximaram para aplaudir. Nem de longe minha mãe parecia a mesma pessoa da primeira aula. Estava bem arrumada, perfumada, o batom cor-de-rosa nos lábios e os olhos feito lamparinas, iluminando tudo ao redor. No lugar do sorriso amarelo, a boca escancarada de uma alegria difícil de explicar. 


Foi a primeira vez que vi uma mulher ser o centro das atenções e ganhar aplausos. A protagonista era minha mãe e gostei de vê-la naquela posição, sendo exaltada. Dentro da cabeça, os pensamentos brincavam. Quando eu crescer, quero aprender a dirigir.






Larissa Campos nasceu em Manaus (AM), em 1987, mas é mato-grossense de coração. Estudou Jornalismo e Direito na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Se considera uma ativista do texto, dessas que levanta a bandeira das palavras e faz da escrita um instrumento de luta, no sentido mais íntimo: as grandes e pequenas batalhas de dentro, o olhar mágico para o cotidiano, a vontade de registrar as cenas que se acendem na memória e que não quer perder. Jornalista, escritora, comunicadora e, antes de tudo, mulher, Larissa teve contos selecionados para as antologias “Ser, nascer e desnascer – Enquanto Mulheres” (Primavera Editorial, 2021) e “Coletânea OFF Flip 2022 – Contos”. O livro de contos “A casa do posto” (Selo Auroras, Editora Penalux) é sua obra de estreia. Para mais informações sobre a autora, acesse o Instagram e o site www.laricampos.com.