por Dias Campos__
O professor Amauri era muito querido e respeitado na escola municipal da pequena Arraial, onde lecionava literatura. Tanto que desde o início do ano letivo já havia sido eleito como paraninfo da turma que se formaria.
Certa tarde, seus alunos notaram-lhe um semblante diferente. Estava mais bem disposto que o de costume, a verve fluía como nunca, e o sorriso parecia que jamais o abandonaria.
Começaram os sussurros, que logo tomaram conta da classe.
O mestre interveio, querendo saber o que acontecia.
E o tema passarinho verde despontou em meio às risadas.
Mesmo encabulado, o docente acabou confessando que o seu bem-estar devia-se a ele ter conseguido espiar a moça de Tithão.
A resposta pegou a todos de surpresa. E calaram-se.
Dando-se por satisfeito, o educador prosseguiu com a matéria. – Ao virar-se para a lousa, contudo, levantou sutilmente o canto direito da boca.
Ao chegarem às suas casas, os estudantes contaram aquela audaciosa revelação.
E os pais ficaram bastante decepcionados. Afinal, como alguém que tanto admiravam teve a coragem de ficar espiando uma mulher casada? E quanta desfaçatez em revelar a sua conduta em plena sala de aula!
Talvez esse episódio tivesse sido esquecido, não fosse o fato de o professor Amauri retornar no dia seguinte ainda mais feliz.
Foi quando o mais atilado da turma, porque não se aguentasse, resolveu perguntar se o motivo da euforia seria ainda a tal da moça.
O mestre virou-se para ele, e, sem a menor consternação, justificou que o seu estado de espírito aumentara porque, dessa vez, tinha sido acariciado pela moça de Tithão.
Os olhos de todos arregalaram-se! E houve até alunas que os sentissem úmidos pelo desgosto.
A notícia sobre o relacionamento extraconjugal começou a alastrar-se mais rápido do que fake news em grupos de WhatsApp. E logo os comentários já dominavam a cidade.
Onde houvesse pelos menos duas pessoas conversando, e a descarada aventura amorosa era o assunto dominante.
É claro que as recriminações compunham a esmagadora maioria das opiniões, haja vista ser o culpado pela destruição de uma família honrada, humilde e trabalhadora.
Quais os ardis que teria utilizado para corromper a pobre moça? aproveitara-se da sua frustração como esposa? assegurara recompensas materiais aos filhos? seduzira-a com promessas de casamento? Essas e muitas outras perguntas não paravam de pipocar nas rodas das más línguas.
De outra parte, havia também quem o aplaudisse e caçoasse do esposo traído; sobretudo nos bares, e depois de algumas doses de cachaça.
Mas uma pergunta ficava sempre incomodando: Quem seria esse Tithão? Em Arraial, cidadezinha do interior, todos se conheciam. E ninguém jamais ouvira falar dele. Ao que parecia, portanto, é que se tratava de um caboclo que habitava algum rincão desconhecido, ou em cidade próxima.
Fosse como fosse, o professor Amauri continuava lecionando, seus colegas de docência preferiam fazerem-se de surdos, e o nono ano ficava cada vez mais chateado.
E como o desconforto só aumentasse, seus alunos resolveram alertar o mestre para o perigo que corria, pois quem garantiria que Tithão não quereria lavar a honra com sangue?
Para tanto, optaram por uma investida direta, sem rodeios, em que a franqueza, aliada à sincera preocupação, por certo abririam os seus olhos, fazendo com que desistisse da tresloucada ousadia.
No entanto, caso resolvesse ir adiante com o adultério, a decisão seria respeitada, e eles não insistiriam. Mas procurariam outro nome para ser o paraninfo.
E quando o educador entrou na sala para dar a última aula da semana, o porta-voz da classe levantou a mão direita e pediu a palavra.
Amauri achou estranho, sobretudo porque percebia, nos muitos rostos, que à estranhável mudez somava-se uma angustiante expectativa. Mas deu licença para que falasse.
O garoto começou a dizer, com voz receosa, que todos tinham ficado um pouco desapontados com a recente novidade, uma vez que contar para a turma que ficara espiando uma moça casada não seria a postura mais adequada para um professor. De outra parte, garantiu que estavam muito preocupados com a sua segurança, pois talvez o marido já soubesse dos afagos, e, se fosse violento, é provável que quereria vingar-se. E finalizava questionando se esse arroubo valeria mesmo à pena.
O mestre gargalhou. E de uma forma tão espontânea que todos ficaram boquiabertos!
Mas antes que alguém pensasse em retrucar, o docente foi dizendo que espiar ou sentir as carícias da moça de Tithão nada tinha de reprovável ou de perigoso. E tanto isso era verdade, que muito antes de ser ele o contemplado, pelo menos cinco dos seus melhores amigos já se tinham inebriado quando a viram. E ficaram absolutamente extasiados assim que ela os tocou!
Seria difícil afirmar se o que acabara de dizer atenuava ou agravava a sua situação, pois se era verdade que aos olhos dos estudantes a moça de Tithão deixava de ser aquela criatura angelical que fora por ele seduzida, nem por isso essa justificativa seria menos censurável que descabida.
A classe permanecia em silêncio.
O educador sorria como se nunca tivesse feito nada de errado.
E das faces dos adolescentes partiam mensagens de tristeza, de desaprovação, e até de desprezo.
Percebendo o “climão”, o professor Amauri subiu no tablado, virou-se para a turma, e disse que, por não ser surdo nem cego, sabia, perfeitamente, do alvoroço que o seu relacionamento com a moça de Tithão causara aos alunos, à escola e aos cidadãos. E que se subestimara as consequências do seu ato, afirmava, porém, que tal affaire nada tinha de condenável.
E para que tudo fosse esclarecido, para que a vida seguisse adiante em seu conhecido ramerrão, o educador fazia questão de que falasse à classe o seu amigo Luís, quem de fato o apresentara àquela divina moça.
O burburinho foi inevitável. Ora, mas que atrevimento! que falta de vergonha trazer para o aconchego da sala de aula um sujeito que servira de ponte à satisfação da sua libido!
E quando algumas garotas já se levantavam para irem reclamar ao diretor, o mestre antecipou-se, retirou Os Lusíadas da maleta, levantou-o acima da cabeça, e disse à voz firme: Eis o Luís!...
Todos ficaram imóveis. E ninguém entendia patavina.
Amauri pediu ao representante da classe que viesse para o seu lado e que lesse em voz alta determinada estrofe do canto segundo.
Mesmo ressabiado, o garoto foi até ele.
Ao abrir o épico, o docente apontou os versos que ele deveria ler. E o advertiu quanto às dificuldades impostas pelo português arcaico.
E ele os leria, mesmo que tartamudeando:
Mas affi como os raios efpalhados
Do Sol forão no mundo e num momento
Apareceo no rubido horizonte
Na moça de Tithão a roxa fronte
O educador, então, explicou que a moça de Tithão nada mais era do que a poética Aurora dos literatos – aquela claridade que precede o nascer do sol –, sendo que Homero a representou como de “róseos dedos”, tanto na Ilíada como na Odisseia. Essa figura foi repetida por Machado de Assis em várias de suas crônicas; em Tônio Kroeger, Thomas Mann só concordou com a cor; e, em Primavera, Sigrid Undset achou-a avermelhada. Por fim, o professor esclareceu que, à época de Camões, usavam o adjetivo roxo para caracterizá-la, se bem que também significasse vermelho, amarelo, dourado, e até loiro.
Depois desse singelo, mas categórico esclarecimento, não se viam outras reações senão as que demonstravam um desconcertante embaraço, entremeadas por silenciosos pedidos de desculpas.
Para que o mal-estar fosse dissipado, melhor seria que todos voltassem aos estudos. E para tanto, o mestre usaria de um conhecido e eficaz expediente – na próxima aula, haveria prova oral.
Restaria, ainda, desfazer o gigantesco mal-entendido perante o colégio e a comunidade.
Mas o professor Amauri estava tranquilo, pois tinha a certeza de que seus pupilos não tardariam em digitar nos celulares.