por Marisa Teixera__
Era mais fácil eles lidarem com dor física e com todos os fluídos do corpo do que vê-la chorar de infelicidade por estar ali. Endureciam o coração e assumiam ares de técnicos para sobreviver naquele mar de sofrimento. Por isso quando ele tentou consolar Helena com um tudo vai dar certo, ela explodiu feito uma bomba. Todos diziam isso para ela, já estava farta, disse. Pego pelo laço e driblando a indelicadeza dela, o moço retrucou: entrega para Deus. Aí que Helena perdeu as estribeiras, o Todo Poderoso tinha se esquecido dela.
Helena tinha uma boa tolerância com os mais variados tipos de pensamentos mágicos, era escolada nessas crenças desde o berço. A avó materna foi benzedeira, na família teve pai e mãe de santo, uns que frequentaram missa, outros que abraçaram o espiritismo, mais recentemente os que se converteram ao evangelismo.
Ela fora batizada na igreja católica, onde também fizera a primeira comunhão e se comprometera a ser uma serva do Senhor. Passadas tantas décadas, ainda sabia de cor os cânticos, iniciados pelo padre e continuados pelos fiéis, e alguns pontos de terreiro. No entanto, desenvolvera um ceticismo em relação às crenças que não conseguia entender de onde viera e como se instalara, só sabia que não ter fé era como atravessar sozinha um deserto.
Helena tinha se desentendido com uma pessoa querida ao ouvir que os espíritos de luz estavam ao seu lado para ampará-la. Como acreditar, se a pessoa em questão tinha se submetido a uma cirurgia espiritual sem resultado? Achava ilógico que, diante dessa constatação, ainda mantivesse sua crença.
Foram muitas as recomendações à Helena: tomar um passe, usar uma guia ao pescoço, ouvir louvores, fazer promessas, acender uma vela, ajoelhar-se e pedir bênçãos ao Glorioso. A todas, ela ouviu de forma a entrar por um ouvido e sair por outro. Compreendia que era o jeito das pessoas demonstrarem sua preocupação com ela, porém, no fundo, achava que era uma forma delas se protegerem da angústia de ver uma pessoa querida, reputada como uma fortaleza, naquelas condições de fragilidade.
Era mais tolerável para Helena aceitar que as pessoas lhe mandassem vibrações, energias, que rezassem por ela e colocassem seu nome nas orações, melhor contar com a fé alheia.
Outras pessoas insistiam em convertê-la na sua crença. Uma delas foi sua companheira de quarto que havia recebido a notícia de uma doença grave. Helena teria desmontado, mas a moça, com a voz embargada pelo choro, afirmou que Deus sabia o que fazia. Ele queria que ela aprendesse alguma coisa. Helena lhe perguntou se ela não poderia adquirir o tal aprendizado com menos desgraça. Sua resposta foi que confiava no Supremo e que Ele estava do lado de Helena também, era só pedir, orar, acreditar. Ela resolveu ir para cima: Deus não estava nem um pouco preocupado com ela, Ele tinha bilhões de indivíduos para socorrer, devia estar muito ocupado para lhe dar atenção. A mulher retrucou que Ele atendia as pessoas especiais, iluminadas, Helena era uma delas. Como ela sabia? Podia ver a luz no seu sorriso. Deu-se por vencida diante de tantas certezas, talvez isso fizesse a mulher aguentar a barra que estava por vir, sem que tivesse o mínimo vislumbre.
Tiveram pessoas que ela conheceu que não chegavam a falar do Divino, embora acreditassem numa força superior que dava sinais e os seres tinham que ser capazes de captá-los e trabalhar no sentido da integração do sensível e da racionalidade. A energia cósmica do universo e a natureza eram as divindades. Helena se identificava mais com essa visão, embora suspeitasse que o universo e a natureza não se importavam com nada. Apenas existiam ao acaso. Como elas, como todos nós.
Como nem tudo nesse mundo é oito ou oitenta, tem um espaço cheio de graduação, às vezes Helena deixava-se tomar pelas suas intuições, quando não gostava de uma pessoa, olhando a falta de sorriso de um bebê ou observando um gênio de 3 anos recitando os números da placa de um carro e pensando que coisa boa não ia sair dali. Para seu espanto, as adivinhações se concretizaram. Mas logo seu lado Yang, solar, de atividade e objetividade, retomava o controle.
Algumas vezes, achava que tinha algum tipo de proteção. Há muitos anos, esperando sozinha no ponto de ônibus no centro comercial fechado de uma cidade que lhe era estranha, perto da meia noite, faltando quinze minutos para a partida do último ônibus interurbano do dia, um taxista parou e lhe ofereceu o serviço. Helena não tinha um centavo para pagar a corrida. O homem a levou mesmo assim, correndo desenfreado pelas avenidas a tempo de cortar o caminho do ônibus de viagem na saída da rodoviária. Ela mal agradeceu, saltou, o coração na boca, o desfecho poderia ter sido outro.
Além do mais, tinha dois amuletos em seu carro, um dado por uma amiga com pretensões mórmon, parecia um ramo de planta todo encaracolado, o outro, era uma toalhinha trazida por sua mãe de um templo evangélico.
O caso foi que a sorte bafejou Helena em algumas ocasiões, como aquela que, empunhando seu celular, tirou a foto do carro que lhe tinha abalroado, surpreendendo o ladrão e fazendo-o correr rua acima. Ao contar à sua mãe, ainda tremendo de susto e sem ter compreendido o acontecido, ela havia dito que a culpa era de Helena, que tinha o costume de sair de casa sem arrumar a cama. O anjo da guarda não se levantava nem lhe acompanhava nos seus afazeres, como devia ter acontecido naquela vez. Nunca lhe ocorrera que os anjos dormissem e tivessem que ser despertados.
Pelo sim, pelo não, a partir daquele dia não mais saiu de casa sem estender sua cama. Mesmo ali, na manhã que começava, quando se transferiu da cama hospitalar para a poltrona, dobrou o lençol de cobertura, acertou o outro que servia de forro e tranquilizou-se com a presença do anjo da guarda ao seu lado.